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Cósmica cosmética | Bertrand Prévost | <strong>SPECIES</strong> n1 | 25<br />

relações “harmoniosas” entre o criador divino, suas criaturas e todos os níveis da criação. De modo que a<br />

estética ornamental medieval é animada pela dupla exigência contraditória, ou ao menos paradoxal, de<br />

uma ordem a um só tempo mundana e divina, finita e infinita (trabalhada pela similaridade e pela multiplicação<br />

de um ‘como ao infinito’). 11<br />

Sabemos, aliás, de que conceito, bem como de que fonte estética<br />

a Idade Média cristã terá se valido para expressar a abstração<br />

dessas relações de proporção entre regiões descontínuas ou<br />

opostas: musica. Inspirados tanto por Santo Agostinho quanto<br />

por Boécio, a musica nomeava para os medievais um princípio de<br />

harmonia universal que se articula em medida, número, ritmo. 12 O<br />

ornamental torna-se então o que Jean-Claude Bonne chama muito<br />

judiciosamente de “poder de orquestração [...] capaz de funcionar<br />

como uma espécie de transcodificador abstrato”. 13<br />

Gottfried Semper, em meados do século XIX, foi sem dúvida<br />

quem levou mais longe “um pensamento do ornamento entendido<br />

segundo essa dimensão cósmica” 14 , na qualidade daquilo que ele<br />

mesmo chamará de uma Kunstphysik, uma “física da arte”. 15 O que<br />

Semper buscava era, de fato, a ordem de uma “legalidade natural”<br />

(Naturgesetzlichkeit), significando com isso que os mesmos princípios<br />

naturais devem aplicar-se ao funcionamento tanto do maior<br />

FIGURA 3<br />

como do menor, que as mesmas leis presidem às formas naturais<br />

Livro de Kells, frontispício do<br />

como às formas artificiais. “Quando o homem adorna um objeto,<br />

Evangelho de Marcos, século IX, Dublin,<br />

Trinity College Library, Ms 58, f ele apenas acentua de modo mais nítido, de maneira mais ou menos<br />

consciente, uma legalidade natural já presente no objeto que<br />

o 30r.<br />

ele decora”. 16 Mas, acima de tudo, devemos a Semper a articulação dessa cosmologia do ornamento, não<br />

mais ao ornamento em geral, mas mais precisamente ao ornamento corporal, fornecendo assim o esboço<br />

11<br />

J.-C. Bonne. “De l’ornamental dans l’art medieval (VII e -XII e siècle). Le modèle insulaire”. Em: J.-Baschet e J.-C.<br />

Schmitt. L’image. Fonctions et usages des images dans l’occident medieval. Paris: Cahiers du Léopard d’or 5, 1995. p. 237.<br />

12<br />

Edgar de Bruyne insistiu longamente sobre este sentido genérico de musica: “É sobre as proporções que se funda a<br />

visão estética do mundo. Os próprios antigos a chamaram de musical. Mas é evidente que esse termo aqui não tem em<br />

absoluto a significação moderna: ele é simplesmente sinônimo de estética e designa toda harmonia, não importa qual<br />

seja”, cf. E. de Bruyne. Etudes d’esthétique médiévale (1946). Paris: Albin Michel, 1998. t. I, p. 11. Sobre a estética musical,<br />

ver I, p. 306-338, I, 478-502, II, 227-238 e passim, e sobre a harmonia universal segundo Boécio, cf. I, p. 9-26.<br />

13<br />

Bonne, “De l’ornamental dans l’art médiéval”, p. 238.<br />

14<br />

G. Semper. “De la détermination formelle de l’ornement et de as signification comme symbole de l’art” (1856).<br />

Em: Du style et de l’architecture. Ecrits, 1834-1869. Editado e traduzido ao francês por J. Soulilou. Marselha: Parenthèses,<br />

2007. p. 235.<br />

15<br />

Citado por J. Soulilou em “Introduction” (Semper, Du style et de l’archicteture, p. 27).<br />

16<br />

Semper, “De la détermination formelle de l’ornement”, p. 236.

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