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<strong>SPECIES</strong> n1 | Veronica Stigger | O livro<br />
sempre dizia que, por causa deste conto, jamais poderia se matar: estragaria a ficção – e, como toda boa<br />
egocêntrica (estou para ver traveca mais exibida...), ela levava muito a sério seu trabalho de escrita. Isso<br />
nos faz crer que seu desaparecimento, portanto, não está associado a suicídio. Já em O trágico e outras<br />
comédias, seu primeiro livro, há um conto em que a personagem ama tanto seu umbigo que acaba indo<br />
morar nele, ou seja, em si própria. Aqui, Stigger está jogando com a expressão “só olha para o próprio<br />
umbigo”, isto é, só pensa em si mesma. É o exemplo máximo do que a própria Stigger chamava de, num<br />
mal trocadilho, “autoficação”. Mas estou me alongando muito e ainda não tratei do título do livro: Rancho.<br />
Para mim, é o que há de mais enigmático nesse seu último trabalho. Por que rancho? O que rancho<br />
tem a ver com o enredo do livro: a turnê pelo mundo da leitura de um poema sobre menstruação? A<br />
palavra tem uma série de acepções, mas creio que devemos pensá-la a partir do significado que adquire<br />
no léxico do Rio Grande do Sul – de onde provém Stigger. Rancho é como se denomina, lá no sul, a<br />
compra do mês no supermercado. Se diz “fazer rancho”. Se diz “Bah, mãe, onde é que tu vai? Vou ali no<br />
super fazer rancho”. 7 Voltando ao livro, este termina com a volta de Verônica para o Rio Grande do Sul.<br />
A personagem também era gaúcha, o que reforça a identificação dela com a autora – e peço desculpas<br />
por contar o final da história 8 , mas, neste caso, o retorno para o Rio Grande do Sul talvez seja fundamental<br />
para tentarmos entender o título. Já fazia tempo que, em seus escritos, Stigger vinha voltando<br />
sua atenção para a terra natal ou, pelo menos, vinha recuperando um vocabulário e um jeito de falar que<br />
era típico de lá: guri, negrinho, fuca... Pouco antes de desaparecer, ela lançou, na Argentina, um livro<br />
chamado Sur − em português, Sul − no qual efetivamente há um poema chamado “O coração dos homens”<br />
e que, além deste, reúne mais dois outros textos, sendo o primeiro uma distopia futurista sobre a<br />
Revolução Farroupilha. Ela me disse, no ano passado, que o único feriado que ela respeitaria a partir de<br />
então seria o 20 de setembro. Neste último, fui até seu apartamento e a encontrei de pé no meio da sala,<br />
cantando, com a mão no peito, o hino rio-grandense, em looping. Era como se ela sentisse subitamente<br />
uma vontade de ser gaúcha, uma vontade que ela jamais expressou quando vivia em Porto Alegre: ela<br />
nunca bebeu chimarrão e nunca soube ao certo se quem usava lenço vermelho era chimango ou maragato.<br />
Mas agora parecia querer ser gaúcha. A chave para seu último trabalho talvez possa ser encontrada<br />
numa das epígrafes de Sur. É tirada do conto “O Sul”, de Jorge Luis Borges, em que Juan Dahlmann,<br />
depois de recuperar-se de uma septicemia que quase o matou, retorna (ou sonha ter retornado) ao Sul,<br />
que, no fundo, não lhe pertencia, mas que ele queria muito que fosse seu. O rancho de Veronica Stigger<br />
pode ser uma estância: o rancho pensado como fazendinha – Juan Dahlmann está indo para a estância<br />
da família materna que ele mantinha no Sul. Talvez seu desaparecimento tenha a ver com isso. Num<br />
texto inédito em livro, que Stigger me leu um dia, ela forja um interlocutor que lhe pergunta:<br />
7<br />
Bernardo Carvalho sugeriu que se tratava de plágio do blog do Daniel Galera, que se chama ranchocarne. Dado que<br />
ela é também notória plagiária, talvez devêssemos levar essa hipótese em consideração, em combinação com as demais.<br />
8<br />
As pessoas têm a irritante mania de contar os finais de todos os textos de Veronica Stigger. Parece até castigo, porque,<br />
em rodas de amigos, ela não conseguia se referir a uma piada sem contar, de início, o final.