03.11.2015 Views

SPECIES

species1

species1

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

74 |<br />

<strong>SPECIES</strong> n1<br />

Pedro Cesarino | Montagem e formação do mundo nas artes verbais marubo<br />

Nas estrofes acima, o cantador lança mão de sequências formulares que evidenciam a formação<br />

da extensão do Caminho-Morte através da disposição vertical do corpo de uma serpente (versos 9 a<br />

42) e, em seguida, dos diversos atributos que marcam o trajeto (lama, espinhos, raízes, caramujos, dos<br />

versos 43 em diante). Assim como no caso anterior (e em todos os outros cantos destinados a processos<br />

etiológicos), a sequência de fórmulas se estende o suficiente para dar conta dos outros elementos existentes<br />

no caminho, mais uma vez através da mesma relação de variação de elementos que preenchem<br />

as estruturas formulares fixas. É importante notar que as fórmulas nem sempre explicitam o resultado<br />

do processo de montagem, tal como no caso da sequência dos versos 58-65, nos quais ficamos sabendo<br />

que as veias de cobra-morte foram responsáveis pelo surgimento das minhocas-morte. Nas estrofes anteriores,<br />

os resultados são subentendidos pelo cantador e sua audiência. Daí os subtítulos inseridos por<br />

mim, que visam explicitar para o leitor o processo de formação em questão. Mais uma vez, vemos como<br />

um conjunto predeterminado de elementos é utilizado para a composição da cartografia mítica, através<br />

do trabalho dos espíritos demiurgos ou “fazedores”.<br />

Eu dizia acima que a construção do Caminho-Morte havia sido feita depois da constituição da<br />

terra e do céu por Kanã Mari e seus pares. De fato, o mundo primeiro era um mundo melhor, aberto/<br />

claro (shavá), sem grandes acidentes geográficos, sem mata fechada e demais obstáculos. Ele passará,<br />

no entanto, a ser paulatinamente transformado em um mundo pior por outros agentes dos tempos<br />

míticos, tais como esses que fizeram o Caminho-Morte. Antes, os mortos chegavam diretamente na<br />

Morada Arbórea, um lugar melhor de se viver. Mas Vei Maya, uma mulher que era espancada constantemente<br />

por seu marido, pensou que não era justo que tal destino fosse reservado a todos. Foi então<br />

que ordenou a construção do caminho narrada acima, um caminho difícil que apenas os mortos mais<br />

preparados conseguem atravessar. Em algum momento desses mesmos tempos, os espíritos Kanã Mari<br />

(outra coletividade de agentes transformadores), considerados como espécies de irmãos rivais de Kana<br />

Voã, também começaram a estragar o mundo antigo. A rivalidade entre Kana Voã e os Kanã Mari replica<br />

um célebre problema presente em diversas mitologias ameríndias, objeto das famosas reflexões de<br />

Lévi-Strauss na Histoire de lynx (1991): um irmão mais velho (Kana Voã) realiza determinados feitos<br />

benéficos que, em seguida, são estragados ou alterados por seu irmão mais novo insensato (os Kanã<br />

Mari que, dizem os Marubo, são como Satanás). Os procedimentos pelos quais os Kanã Mari alteram<br />

a paisagem, no entanto, são similares aos que já encontramos nos dois exemplos acima. É o que podemos<br />

ver no seguinte trecho de Kanã Mari Mai Vaná, “Kanã Mari – a formação da Terra”, cantado por<br />

Armando Mariano Marubo:<br />

(...)<br />

Kana panã tekeki<br />

Toco de açaí-arara<br />

90. Teke rakáini Toco deitado deixaram<br />

Kanã Mari kawãti<br />

E os Kanã Mari passaram<br />

Ave anõshorao<br />

Para assim fazer

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!