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<strong>SPECIES</strong> n1<br />
Pedro Cesarino | Montagem e formação do mundo nas artes verbais marubo<br />
Nas estrofes acima, o cantador lança mão de sequências formulares que evidenciam a formação<br />
da extensão do Caminho-Morte através da disposição vertical do corpo de uma serpente (versos 9 a<br />
42) e, em seguida, dos diversos atributos que marcam o trajeto (lama, espinhos, raízes, caramujos, dos<br />
versos 43 em diante). Assim como no caso anterior (e em todos os outros cantos destinados a processos<br />
etiológicos), a sequência de fórmulas se estende o suficiente para dar conta dos outros elementos existentes<br />
no caminho, mais uma vez através da mesma relação de variação de elementos que preenchem<br />
as estruturas formulares fixas. É importante notar que as fórmulas nem sempre explicitam o resultado<br />
do processo de montagem, tal como no caso da sequência dos versos 58-65, nos quais ficamos sabendo<br />
que as veias de cobra-morte foram responsáveis pelo surgimento das minhocas-morte. Nas estrofes anteriores,<br />
os resultados são subentendidos pelo cantador e sua audiência. Daí os subtítulos inseridos por<br />
mim, que visam explicitar para o leitor o processo de formação em questão. Mais uma vez, vemos como<br />
um conjunto predeterminado de elementos é utilizado para a composição da cartografia mítica, através<br />
do trabalho dos espíritos demiurgos ou “fazedores”.<br />
Eu dizia acima que a construção do Caminho-Morte havia sido feita depois da constituição da<br />
terra e do céu por Kanã Mari e seus pares. De fato, o mundo primeiro era um mundo melhor, aberto/<br />
claro (shavá), sem grandes acidentes geográficos, sem mata fechada e demais obstáculos. Ele passará,<br />
no entanto, a ser paulatinamente transformado em um mundo pior por outros agentes dos tempos<br />
míticos, tais como esses que fizeram o Caminho-Morte. Antes, os mortos chegavam diretamente na<br />
Morada Arbórea, um lugar melhor de se viver. Mas Vei Maya, uma mulher que era espancada constantemente<br />
por seu marido, pensou que não era justo que tal destino fosse reservado a todos. Foi então<br />
que ordenou a construção do caminho narrada acima, um caminho difícil que apenas os mortos mais<br />
preparados conseguem atravessar. Em algum momento desses mesmos tempos, os espíritos Kanã Mari<br />
(outra coletividade de agentes transformadores), considerados como espécies de irmãos rivais de Kana<br />
Voã, também começaram a estragar o mundo antigo. A rivalidade entre Kana Voã e os Kanã Mari replica<br />
um célebre problema presente em diversas mitologias ameríndias, objeto das famosas reflexões de<br />
Lévi-Strauss na Histoire de lynx (1991): um irmão mais velho (Kana Voã) realiza determinados feitos<br />
benéficos que, em seguida, são estragados ou alterados por seu irmão mais novo insensato (os Kanã<br />
Mari que, dizem os Marubo, são como Satanás). Os procedimentos pelos quais os Kanã Mari alteram<br />
a paisagem, no entanto, são similares aos que já encontramos nos dois exemplos acima. É o que podemos<br />
ver no seguinte trecho de Kanã Mari Mai Vaná, “Kanã Mari – a formação da Terra”, cantado por<br />
Armando Mariano Marubo:<br />
(...)<br />
Kana panã tekeki<br />
Toco de açaí-arara<br />
90. Teke rakáini Toco deitado deixaram<br />
Kanã Mari kawãti<br />
E os Kanã Mari passaram<br />
Ave anõshorao<br />
Para assim fazer