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SPECIES

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76 |<br />

<strong>SPECIES</strong> n1<br />

Pedro Cesarino | Montagem e formação do mundo nas artes verbais marubo<br />

Os espíritos percorrem um extenso trajeto pela terra, ao longo do qual realizam transformações<br />

diversas através do mesmo procedimento de montagem e disposição de elementos pré-existentes. A<br />

narrativa é propriamente uma série de paradas ao longo de um trajeto (outra característica comum a diversas<br />

mitologias ameríndias), um contínuo tornado discreto pelas etiologias concatenadas nas estrofes<br />

do canto. Em minhas conversas com os pajés (os autores desses cantos entre outros), terminei certa vez<br />

por provocar uma discussão em torno dos ossos dos dinossauros, cujas fotografias eu havia trazido para<br />

a aldeia. Os xamãs diziam que esses ossos eram aqueles dos primeiros animais utilizados pelos espíritos<br />

demiurgos para a montagem do mundo: daí o seu tamanho descomunal e a sua localização no fundo<br />

da terra. Eles serviam, assim, para confirmar que a fabricação do mundo através de partes de animais de<br />

fato havia ocorrido, ainda que por conta do “pensamento de pajé” (kenchintxo chinã).<br />

Essa é a expressão que os pajés costumam empregar para se referir ao jogo de montagem e remontagem<br />

que caracteriza o sistema formular das artes verbais marubo. As fórmulas verbais desde sempre<br />

empregadas pelos pajés e espíritos são capazes de produzir determinados estados de coisas em planos<br />

virtuais (reais portanto, e não fictícios ou imaginários). É nesse sentido que podemos pensar a existência<br />

de referências como o Caminho-Morte, a Morada Subaquática (Ene Shava) e outros domínios<br />

do cosmos, paralelos ao que parece visível para o ponto de vista dos “viventes” (kayakavi yora). Esses<br />

domínios foram formados pelos demiurgos por meio de suas palavras e ações de montagem, tais como<br />

as visualizadas nas narrativas acima. De modo análogo, os pajés atuais também lançam mão de fórmulas<br />

verbais para “pensar” o que lhes parecer pertinente, isto é, para “formar” (shovima) determinados<br />

estados de coisas em um plano virtual. Nisso está assentado um dos aspectos centrais das artes verbais<br />

xamanísticas, que, como argumentei em outros trabalhos (Cesarino 2011, 2013b), pode ser compreendido<br />

através de uma transformação da noção de metáfora. Em uma discussão com os pajés e professores<br />

indígenas, chegou-se à seguinte formulação tradutória: metáforas são “nomes [de determinadas coisas]<br />

usados para transformar” (awen ane anõ shovima). “Nome” (ane) se refere aí a uma ou mais fórmulas<br />

da língua ritual (chinã vana, “fala pensada”) nas quais está contido o conhecimento sobre o processo de<br />

formação das coisas e, portanto, a capacidade de ação sobre as mesmas.<br />

Computadores, por exemplo, são chamados de txi kamã mapõshki, “feitos de cabeça de onça-fogo”<br />

; relógios de txi kamã verõshki, “feitos de olhos de onça-fogo”. Trata-se de fórmulas que poderiam<br />

integrar uma sequência maior de versos e que são, a rigor, gatilhos para a composição de um canto mais<br />

completo, no qual o cantador irá mostrar como computadores ou relógios foram formados pelos espíritos<br />

através de cabeças e olhos de onças. Ao “pensar” essas fórmulas, o cantador retraça seu modo de<br />

formação ou de surgimento (awen shovima, awen wenía) e consegue controlar, por exemplo, as dores<br />

de cabeça provocadas por televisores e computadores ou, ainda, as possíveis febres causadas pelo uso de<br />

relógios (sobretudo os digitais).<br />

O exemplo tecnológico não deve surpreender, pois tudo pode ser potencialmente contemplado<br />

pelo “pensamento de pajé”. Nesse sentido, implementos tecnológicos também são virtualmente montáveis<br />

e desmontáveis pela bricolagem mitopoiética, de maneira homóloga àquela pela qual as diversas

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