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<strong>SPECIES</strong> n1<br />
Pedro Cesarino | Montagem e formação do mundo nas artes verbais marubo<br />
Os espíritos percorrem um extenso trajeto pela terra, ao longo do qual realizam transformações<br />
diversas através do mesmo procedimento de montagem e disposição de elementos pré-existentes. A<br />
narrativa é propriamente uma série de paradas ao longo de um trajeto (outra característica comum a diversas<br />
mitologias ameríndias), um contínuo tornado discreto pelas etiologias concatenadas nas estrofes<br />
do canto. Em minhas conversas com os pajés (os autores desses cantos entre outros), terminei certa vez<br />
por provocar uma discussão em torno dos ossos dos dinossauros, cujas fotografias eu havia trazido para<br />
a aldeia. Os xamãs diziam que esses ossos eram aqueles dos primeiros animais utilizados pelos espíritos<br />
demiurgos para a montagem do mundo: daí o seu tamanho descomunal e a sua localização no fundo<br />
da terra. Eles serviam, assim, para confirmar que a fabricação do mundo através de partes de animais de<br />
fato havia ocorrido, ainda que por conta do “pensamento de pajé” (kenchintxo chinã).<br />
Essa é a expressão que os pajés costumam empregar para se referir ao jogo de montagem e remontagem<br />
que caracteriza o sistema formular das artes verbais marubo. As fórmulas verbais desde sempre<br />
empregadas pelos pajés e espíritos são capazes de produzir determinados estados de coisas em planos<br />
virtuais (reais portanto, e não fictícios ou imaginários). É nesse sentido que podemos pensar a existência<br />
de referências como o Caminho-Morte, a Morada Subaquática (Ene Shava) e outros domínios<br />
do cosmos, paralelos ao que parece visível para o ponto de vista dos “viventes” (kayakavi yora). Esses<br />
domínios foram formados pelos demiurgos por meio de suas palavras e ações de montagem, tais como<br />
as visualizadas nas narrativas acima. De modo análogo, os pajés atuais também lançam mão de fórmulas<br />
verbais para “pensar” o que lhes parecer pertinente, isto é, para “formar” (shovima) determinados<br />
estados de coisas em um plano virtual. Nisso está assentado um dos aspectos centrais das artes verbais<br />
xamanísticas, que, como argumentei em outros trabalhos (Cesarino 2011, 2013b), pode ser compreendido<br />
através de uma transformação da noção de metáfora. Em uma discussão com os pajés e professores<br />
indígenas, chegou-se à seguinte formulação tradutória: metáforas são “nomes [de determinadas coisas]<br />
usados para transformar” (awen ane anõ shovima). “Nome” (ane) se refere aí a uma ou mais fórmulas<br />
da língua ritual (chinã vana, “fala pensada”) nas quais está contido o conhecimento sobre o processo de<br />
formação das coisas e, portanto, a capacidade de ação sobre as mesmas.<br />
Computadores, por exemplo, são chamados de txi kamã mapõshki, “feitos de cabeça de onça-fogo”<br />
; relógios de txi kamã verõshki, “feitos de olhos de onça-fogo”. Trata-se de fórmulas que poderiam<br />
integrar uma sequência maior de versos e que são, a rigor, gatilhos para a composição de um canto mais<br />
completo, no qual o cantador irá mostrar como computadores ou relógios foram formados pelos espíritos<br />
através de cabeças e olhos de onças. Ao “pensar” essas fórmulas, o cantador retraça seu modo de<br />
formação ou de surgimento (awen shovima, awen wenía) e consegue controlar, por exemplo, as dores<br />
de cabeça provocadas por televisores e computadores ou, ainda, as possíveis febres causadas pelo uso de<br />
relógios (sobretudo os digitais).<br />
O exemplo tecnológico não deve surpreender, pois tudo pode ser potencialmente contemplado<br />
pelo “pensamento de pajé”. Nesse sentido, implementos tecnológicos também são virtualmente montáveis<br />
e desmontáveis pela bricolagem mitopoiética, de maneira homóloga àquela pela qual as diversas