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<strong>SPECIES</strong> n1<br />
Pedro Cesarino | Montagem e formação do mundo nas artes verbais marubo<br />
| 67<br />
Pretendo aqui fazer uma reflexão retrospectiva sobre um aspecto específico que atravessa minha etnografia<br />
dos Marubo, reunida em alguns artigos e em dois livros recentes (Oniska, de 2011, e Quando a<br />
Terra deixou de falar, de 2013). Trata-se dos processos de montagem e de formação que caracterizam as<br />
narrativas sobre os tempos primeiros e, também, os modos de agenciamento ritual. Embora fosse dedicado<br />
a assuntos diversos tais como a tradução de cantos e narrativas, a constituição da pessoa múltipla, o<br />
sistema de cura, a escatologia e o xamanismo marubo, Oniska possuía um problema conceitual de base:<br />
o problema da diferença e da repetição, ou da reiteração e combinação de determinados esquemas formulares<br />
e conceituais, partilhado pelos diversos modos ou gêneros das artes verbais marubo. Vou aqui<br />
mostrar como tal problema se associa aos processos de montagem e de formação (ou de transformação)<br />
do mundo. Tais processos não apenas indicam uma forma peculiar de conceber a cena inicial do cosmos<br />
e suas transformações mas, também, um registro original de pensamento e de criação potencialmente<br />
irredutível às imagens genéticas das metafísicas ocidentais e da antiguidade europeia. 1<br />
Entre os Marubo, a multiplicidade de agentes (ou o que chamamos de espíritos) presentes desde<br />
o começo dos tempos é responsável pela constituição da paisagem inicial do cosmos e por sua atual<br />
configuração. Tudo se passa como se aspectos do cosmos e da pessoa pudessem ser constantemente<br />
reconstruídos ou refabricados, através de processos similares àqueles utilizados no começo dos tempos.<br />
O próprio xamanismo reflete e atua sobre a instabilidade do mundo atual através do uso ritual de fórmulas<br />
verbais que partilham desse mesmo modus operandi, uma vez que os xamãs viventes são pessoas<br />
complexas capazes de se conectar ou estender aos espíritos, os yovevo.<br />
***<br />
Entre os Marubo, espíritos demiurgos são chamados de shovimaya yora ou de wenímaya yora, “pessoas<br />
fazedoras” ou “pessoas responsáveis pelo surgimento”, isto é, pela formação das paisagens primeiras.<br />
Grande parte das narrativas se dedica a expor a formação do céu e da terra, mas também do mundo<br />
subaquático, dos animais, do Caminho dos Mortos, dos próprios pajés-espíritos e, potencialmente, de<br />
tudo o que existe. Considerados como similares aos pajés rezadores (kenchintxo) que costumam atuar<br />
nas aldeias marubo, os demiurgos se valem de modos de formação e de transformação do mundo que,<br />
nos tempos atuais, são também utilizados por esses pajés viventes, concebidos como “quase como espíritos”<br />
(yovepase) por terem alterado sua própria condição de humanidade ao longo de processos de<br />
iniciação. Ainda que sejam menos potentes do que os espíritos, os pajés viventes lançam mão de procedimentos<br />
rituais, assentados no uso de fórmulas verbais e de substâncias psicoativas, que replicam os<br />
tais modos de formação desde sempre presentes nas ações dos demiurgos.<br />
Para compreender o seu sentido, devemos realizar um percurso por algumas das narrativas míticas<br />
cantadas (os saiti). O começo dos tempos era marcado pela existência de uma multiplicidade de<br />
1<br />
Veja Cesarino 2014 para um estudo comparativo sobre modos de formação do mundo nas terras baixas sulamericanas,<br />
postos em contraste com a matriz narrativa do Gênesis.