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O livro | Veronica Stigger | <strong>SPECIES</strong> n1 | 97<br />
professora de arte na rede pública fundamental para se dedicar só à leitura de “O coração dos homens”.<br />
Até os livros, que ela amava tanto, deixa para trás. Numa cena demencial de Rancho, Verônica coloca<br />
tudo o que possui dentro de caixas-arquivos. Até as coisas que não cabem numa caixa-arquivo, ela dá<br />
um jeito de colocá-las lá. Ela serra seu sofá e distribui os vários pedacinhos pelas caixas-arquivos. O<br />
mesmo ela faz com a mesa, a geladeira, o fogão, a cama king size (além de sem-noção, Verônica era espaçosa...),<br />
o armário, a escrivaninha, as inúmeras estantes de aço, a televisão de 40 polegadas, a máquina<br />
de lavar... até o gato. Ela não chega a serrar o gato, é claro, mas o dopa e o deposita enroscado dentro da<br />
caixa-arquivo. Depois, leva tudo para um depósito e sai pelo mundo apenas com um baú repleto de fantasias.<br />
O capítulo em questão é o único que tem epígrafe – de Walter Benjamin: “O caráter destrutivo<br />
é o adversário do homem-estojo” – e começa assim:<br />
Eu estava concentrada na limpeza do parquê com palha de aço – fazia pouco que descobrira as maravilhas<br />
da palha de aço − quando Aristides chegou com as caixas-arquivos. Você não vai acreditar na maravilha<br />
que é isso aqui, disse-me ele, erguendo uma das quatro caixas-arquivos que trazia nas mãos. É fabuloso,<br />
reiterou, arrumei toda minha papelada com dez dessas. Sobraram essas quatro e as trouxe para você, arrematou.<br />
Tome, você vai adorar. Obrigada, disse-lhe, pegando as tais caixas-arquivos. Você quer tomar um<br />
chá?, ofereci.<br />
Reparem que o trecho acima não é lá grande coisa. Pelo contrário, chega a ser comum demais, mal escrito<br />
(repete desnecessariamente a palavra “maravilha”), banal (cá entre nós, a escrita dela é sempre meio<br />
banal, quase infantil, frouxinha). Qualquer um poderia ter escrito isso. E há ainda um agravante: nesse<br />
trecho, ela introduz um personagem, o Aristides, que vai ter uma única função na história: apresentar<br />
a Verônica as caixas-arquivos. Depois que toma o chá, ele se retira da narrativa e não aparece mais. Ou<br />
seja, é quase um inútil! Como já chamei a atenção anteriormente, há pontos de contato entre a personagem<br />
e a autora, para além do nome em comum, Verônica, e do interesse pela palha de aço. 5 Poderíamos<br />
dizer, então, que se trata de autoficção? Talvez. Eu diria, porém, que, no caso dela, é egocentrismo<br />
mesmo – um egocentrismo quase patológico. 6 Traços desse egocentrismo já são perceptíveis em seus<br />
livros anteriores. Não podemos esquecer que, em Os anões, ela reproduz em fac-símile a sua certidão de<br />
nascimento, através da qual ficamos sabendo que Stigger é, na verdade, homem. Neste mesmo livro, há<br />
vários textos em que ela se refere explicitamente a si mesma. “L’aprés midi de V. S.” (ou seja, Veronica<br />
Stigger) é um deles e “200m2”, em que uma personagem com seu nome se suicida, é outro. Stigger, aliás,<br />
5<br />
Stigger planejava escrever um conto sobre a palha de aço. Fez até mesmo algumas anotações: “Fazer um conto em<br />
que a personagem principal vai descobrindo os encantos da palha de aço e acaba por passar palha de aço em toda a<br />
cidade. Ir num crescente até sabe-se lá quando, até que ela apague tudo, até mesmo a cidade, restando apenas ela e a<br />
palha de aço”.<br />
6<br />
Ela era tão egocêntrica que, uma vez, a convidaram para falar sobre qualquer livro de sua predileção numa série de<br />
palestras de escritores. Ela poderia escolher qualquer um dos livros de seus autores preferidos, Borges, Bolaño, Kafka,<br />
Clarice Lispector... Mas sabe que livro ela escolheu? Um livro dela mesma! Confesso que é nessas horas que fico pensando:<br />
por que não fui estudar Adonias Filho?...