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Dois textos (quase) inéditos de Paulo Leminski (1977) | <strong>SPECIES</strong> n1 | 81<br />
intensidade com o mínimo de matéria, criar “força estética” 2 a partir do pouco, como na anedota dos<br />
monges e das maçãs, narrada no texto.<br />
Em “Pajé”, também publicado no Anexo, naquele mesmo ano de 1977, Leminski chega a inserir<br />
esses personagens conceituais em uma espécie de “árvore genealógica” dos modos de vida baseados em<br />
algo próximo a ideia de subsistência, na qual estariam incluídos os xamãs, os cínicos antigos, os taoístas,<br />
os beatniks, entre outros. 3 Para estes se tratava de valorizar o silêncio, a solidão, a contemplação, o<br />
despojamento material, produzindo uma existência “puramente relacional” (que não transformava a<br />
“natureza” em mero recurso, mas a encarava como sujeito com a qual estabelecia múltiplas relações),<br />
não fundada no ser, no progressismo e no ativismo, mas baseada na paixão e na passividade (entendida<br />
como relação não colonizadora com o mundo), em uma vida vivida com menos, na contramão do homem<br />
ocidental moderno. Com menos, porém mais intensa.<br />
“Pajé” é um dos escritos nos quais Leminski procurou pensar a respeito desses modos de vida<br />
outros, buscando exemplos fora, isto é, no xamanismo ameríndio. O poeta parecia sugerir (sem o dizer<br />
explicitamente) que o modo de vida indígena, especialmente a figura do pajé/xamã, poderia inspirar<br />
a constituição de outras formas de existir no contexto pós-apocalíptico do qual se falou acima (sem<br />
recorrer ao senso comum, mas não imune a algumas imprecisões 4 ). O pajé/xamã era, de acordo com<br />
Leminski, aquele que, simultaneamente, propiciava a tribo o encontro com o Outro (outras espécies,<br />
outros pontos de vista, outras experiências, etc.) e lhes fornecia o saber que garantiria sua subsistência<br />
em um contexto de crise e escassez, em que estavam perdendo seus mundos para a “Civilização”. A vida<br />
contemplativa do pajé, seu silêncio, sua solidão e sua capacidade de acumular saberes, faria dele alguém<br />
que, com sua passividade, seria capaz de entrar em contato com outros mundos e experimentar outras<br />
intensidades. Daí o fato de que ele fosse, ao mesmo tempo, o cientista, o poeta, o psicólogo e o filósofo<br />
da tribo, “infundindo ânimo e alma àquelas musculaturas meramente eficazes”, tirando os jovens de sua<br />
rotina de trabalhos e levando-os para os limiares da humanidade, onde se encontravam com o “caos das<br />
trevas exteriores, infestadas de feras, demônios e outras entidades menos definidas”.<br />
Não se tratava, para Leminski, portanto, de reduzir o uso que a cultura fazia da natureza, o que<br />
significaria permanecer no interior da dinâmica daquela mesma economia, mas de reconfigurar o aparelho<br />
“econômico-mitológico” para uma nova Era (que “não vai ser festival”) na qual essa dicotomia<br />
(natureza e cultura) daria lugar a outras formas de relação entre sujeitos. O que estava em questão era<br />
uma certa ideia de subsistência (tal como a que Pierre Clastres já havia descrito em 1974), encarada<br />
como forma de vida, modo ativo de fazer, e não como incapacidade de produzir excedente. Contra os<br />
limites impostos pelo desenvolvimento das atuais sociedades capitalistas (o fim dos recursos naturais<br />
2<br />
Paulo Leminski. “Ventos ao vento”. Em: Ensaios e anseios crípticos. Curitiba: Pólo Editorial do Paraná, 1997. p. 83.<br />
3<br />
Também se poderia pensar, de acordo com outros textos do poeta, que o haicai ou os “caminhos” japoneses fazem<br />
parte desses modos de vida.<br />
4<br />
Leminski faz sua interpretação a partir da leitura de texto não referenciado de Aryon Dall’Igna Rodrigues, linguista<br />
brasileiro, estudioso da língua de uma série de povos indígenas.