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<strong>SPECIES</strong> n1 | Bertrand Prévost | Cósmica cosmética<br />
geométricas no mais das vezes, tanto quanto a uma forma global para ligá-lo à ordem do mundo. Mas<br />
qual ornamento corporal se reduz a um simples círculo, a um simples plano regular (para não falar do<br />
movimento de que o paramento é dotado ao ser portado, ainda que Semper tenha levado em conta<br />
essa dimensão dinâmica)? A partir daí, todos os paramentos se assemelham de maneira aproximada e a<br />
incomparável variedade das formas cosméticas se vê muito rapidamente reduzida a um catálogo de três<br />
ou quatro entradas. Ao ligar analogicamente a regularidade cosmética à regularidade cósmica, é a singularidade<br />
do paramento em geral, tanto quanto a singularidade deste paramento singular, que se dissolve.<br />
Seria um engano, porém, crer que a singularidade é inversamente proporcional à abertura cósmica<br />
do paramento. Não que não haja regularidades na cosmética, mas certamente não é por elas que se<br />
assinala sua dimensão cósmica. Pois se trata, em primeiro lugar, de pensar uma mundanidade do paramento<br />
que seja real; trata-se de experimentar uma relação entre o mundo e o ornamento corporal que<br />
não passe mais pela mediação de uma analogia, mas que se imponha em sua soberana continuidade. A<br />
via que se delineia toma assim um caminho duplamente antípoda ao que se viu até agora. Ela infringe<br />
de início a ideia antiga (e difundida em larga escala sobre o planeta) de uma ordem cósmica concebida<br />
como um belo arranjo. Nisso, ela se inscreve perfeitamente na modernidade dos séculos XVII e XVIII e<br />
sua crítica do cosmos como universo fechado. 37 “O mundo não tem conteúdos significantes, pelos quais<br />
se poderia sistematizá-lo, nem significações ideais, pelas quais se poderia ordená-lo, hierarquizá-lo”. 38<br />
Mas ela infringe igualmente essa mesma modernidade e seu leitmotiv da “perda do mundo”, ao considerar<br />
notadamente como nula e malsucedida a crítica kantiana da cosmologia racional. De Nietzsche<br />
a Deleuze, passando por Whitehead, Bergson e ainda outros, é todo um ramo (por certo minoritário)<br />
da metafísica ocidental, uma “outra metafísica” 39 , que num só gesto recusou a subjetivação moderna<br />
do mundo sem por isso voltar à objetividade grega de uma ordem transcendente. A rigor, poderíamos<br />
dizer que nossa tarefa é o exato inverso daquela que se atribuiu Ernst Gombrich: enquanto, moderno<br />
naturalista, o historiador da arte expurgava a ordem (ornamental e natural) de toda e qualquer unidade<br />
cósmica, conviria expurgar a unidade cósmica de toda e qualquer ideia de ordem, se é verdade que tal<br />
“unidade” deve de agora em diante pensar-se menos como cosmos – a ideia de ordem estando-lhe talvez<br />
irremediavelmente ligada – do que, para falar como Joyce, caosmos.<br />
Os tormentos da projeção<br />
Toda essa bela metafísica restará, porém, como um voto piedoso enquanto não tivermos colocado a<br />
questão crucial de saber como se determina morfologicamente a cosmicidade do paramento. Quais são<br />
37<br />
Ver a obra clássica de Alexandre Koyré. Du Monde clos à l’univers infini. Paris: Gallimard, 1973 [edição brasileira:<br />
Do mundo fechado ao universo infinito. 4. ed. revista. Tradução de Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Forense<br />
Universitária, 2006].<br />
38<br />
G. Deleuze. Proust et les signes. Paris: PUF, 1964. p. 193-194 [ed. bras.: Proust e os signos. 2.ed. Tradução de Antonio<br />
Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. p. 153].<br />
39<br />
Para falar como Pierre Montebello, em seu livro L’Autre métaphysique. Essai sur Ravaisson, Tarde, Nietzsche et Bergson.<br />
Paris: Desclée de Brouwer, 2003.