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<strong>SPECIES</strong> n1 | Bertrand Prévost | Cósmica cosmética<br />
a projeção de um corpo exterior. Essa projeção, com muita frequência, pode chegar à incorporação 47 : a<br />
exterioridade do paramento é como que interiorizada pelo corpo, com todos os acentos dramáticos que<br />
o homem moderno terá desejado ver nessa “extensão trágica” de um corpo a seus atavios, estranhos à<br />
sua substância, para falar como Aby Warburg. 48 E se recusamos aos animais o paramento (no Ocidente,<br />
bem entendido), é porque os animais não projetam nada. Eles têm habitudes, mas não hábitos. 49 Ou<br />
melhor: se a vestimenta, ao menos em toda a tradição antiga e cristã, é tida como o próprio do homem,<br />
é porque a projeção humana terá encontrado na vestimenta, ou mais exatamente no revestimento, algo<br />
como seu ato originário, como sua dinâmica soberana: um corpo segundo e cultural – hábitos [habits],<br />
paramentos, objetos – aplica-se a um corpo primeiro, nu e natural. 50<br />
Jacques Soulilou estabeleceu algumas balizas<br />
para criticar tal modelo projetivo ao armar uma<br />
dialética da vestimenta e do paramento. Ao fazê-<br />
-lo, é a hipótese de Gottfried Semper que se vê<br />
revigorada, ou seja, essa espécie de ficção histórica<br />
que quer que todas as artes, a começar pela<br />
arquitetura, tenham sua origem na fabricação de<br />
têxteis – não mais, portanto, o Semper pensador<br />
da arquitetura cósmica, mas o Semper genealogista<br />
da tecelagem técnica e estética 51 (fig. 13).<br />
O princípio do vestuário ou do revestimento<br />
(Bekleidung) designava para Semper, com efeito,<br />
todo o contrário de um ato projetivo, na medida<br />
em que a própria vestimenta não era a seus olhos<br />
um ser de superfície aplicado sobre um corpo. A<br />
>>L. Bergstein. Enlouquecer o subjétil. Tradução de Geraldo Gerson de Souza. Cotia: Ateliê Editorial; São Paulo:<br />
UNESP e Imprensa Oficial, 1998).]<br />
47<br />
Mauss, Manuel d’ethnographie, p. 96: “O homem sempre buscou, em sociedade, sobrepor a si algo de belo, incorporá-lo<br />
a si”.<br />
48<br />
Ver A. Warburg. Souvenir d’um Voyage en pays Pueblo. Notes inédites pour la conférence de Kreuzlingen sur le rituel du<br />
serpente (1923). Tradução ao francês de S. Muller, em: P.-A. Michaud. Aby Warburg et l’image em mouvement. Paris:<br />
Macula, 1998; p. 264-265: “Tragédia da incorporação fenomenológica. – Uma extensão trágica porque ela não correspondia<br />
a seu ser. [...] Donde vêm todas essas questões e esses enigmas sobre a empatia diante da natureza inanimada?<br />
Porque existe efetivamente para o homem um estado que o pode unir a alguma coisa – justamente ao portar ou ao<br />
manejar alguma coisa – com alguma coisa que lhe corresponde, mas que não corre em suas veias. O trágico do costume<br />
e do utensílio é a história da tragédia humana [...]”.<br />
49<br />
Em francês, há um jogo entre habitudes – hábitos no sentido de práticas costumeiras – e habits – hábitos no sentido<br />
de indumentária. Para preservar o jogo, recorremos ao pouco usual “habitudes”, dicionarizado em português.<br />
50<br />
Gil Bartholeyns analisou a fundo este próprio indumentário do homem no ocidente: ver o já citado “L’homme au<br />
risque du vêtement”.<br />
51<br />
Ver Semper, Der Stil. Não nos cabe aqui estendermo-nos mais longamente sobre a ficção semperiana e sua fecundidade<br />
histórica.<br />
FIGURA 13: Fachada da tumba de Midas,<br />
lâmina tirada de G. Semper, Der Stil, Munique, 1860.