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Aprendendo sobre os diálogos cerimoniais Yanomami | José Kelly | <strong>SPECIES</strong> n1 | 51<br />

realmente correta. Além disso, duas vezes em nossa conversa, falou-se que os velhos metaforizam especificamente<br />

para prevenir que jovens, crianças e mulheres entendam tudo. Até onde isto é uma maneira<br />

de falar ou é de fato realizado não posso dizer, mas essa intenção, de todo modo, parece destacar o alto<br />

valor da metáfora e uma certa pertinência de desafio à compreensão no wayamou.<br />

A habilidade em wayamou é referida como sendo aka hayu, em oposição a aka porepi, que significa<br />

literamente “ter a língua de fantasmas”, e normalmente é usada para se referir a crianças pequenas<br />

que ainda não falam a língua Yanomami, a alguém não-Yanomami que está aprendendo a língua, ou a<br />

mudos. Não ter a destreza para o wayamou está então ligado a não ser capaz de falar. Em um sentido, o<br />

wayamou é a arte que epitomiza a linguagem e a fala, na qual a metáfora contrasta com as referências<br />

diretas, assim como a verdade ou a importância ofusca a trivialidade. Mais ainda, de forma mais abrangente,<br />

a expressão aka hayu remete à esperteza de uma pessoa no manejo de todas as relações de troca<br />

– tipicamente, o tratamento apropriado dos visitantes e da troca material – e é uma distinção dos velhos<br />

influentes que exemplificam a moralidade da troca Yanomami (Lizot, 1994).<br />

Outra expressão ligada à destreza para wayamou seria wã nakri, “palavra/voz amarga”. A expressão<br />

transmite força, rapidez e metáfora, todas as qualidades necessárias para a excelência em wayamou.<br />

Também nos leva à questão das origens da destreza em wayamou. Além da prática, parece haver vários<br />

caminhos para ser aka hayu. A referência a nakri está vinculada à prática de comer pimenta para preparar<br />

a garganta para o discurso forte e fluido no wayamou. Marcelo me disse que a voz wayamou no<br />

tempo mítico veio da árvore dos cantos amoa hii, da qual os ancestrais Yanomami se aproximaram atraídos<br />

pelos cantos que nunca tinham ouvido. Eles dançaram em volta dela: de um buraco à meia altura<br />

no seu tronco brotavam cantos mais ou menos decentes, e de um buraco no alto da árvore, por sua vez,<br />

brotavam cantos realmente belos. Os ancestrais míticos dos Yanomami escutavam e retinham esses cantos<br />

e assim adquiriram a habilidade para wayamou. Então, hoje, deve-se sonhar com esta cena, deve-se<br />

ser visto por essa árvore dos cantos, deve-se escutar os seus cantos caso se queira ir bem em wayamou.<br />

A literatura sobre wayamou menciona outros caminhos, tais como possuir o espírito da Thafirayoma,<br />

Mulher Relâmpago, esposa do Trovão, caracterizada como de temperamento explosivo, propensa a reprimendas<br />

fortes e tendo fogo no epírito – e aqui a referência à pimenta aparece de novo (Alès, 1990).<br />

Uma última noção a que wayamou parece intrinsecamente ligado é a de no prëai: sofrer ou ter perdido<br />

a dignidade (Lizot, 2004). Talvez, no mais simples dos sentidos, sofra-se em wayamou por meio do<br />

esforço físico (cf. Allès, 1990). Mas meus amigos Yanomami falavam de wayamou como no prëa-ma-<br />

-yo-u: “fazer um ao outro sofrer reciprocamente”, e isso se refere ao viés político sobre o qual o wayamou<br />

repousa e que ele constitui. E, nesse limite entre aliança e colapso, os Yanomami enfatizam a resolução<br />

de conflitos ao invés do contrário. Na prática isso significa que, quando existe um problema entre as<br />

comunidades envolvidas, a comunidade anfitriã desabafará toda a sua reprovação dirigida aos visitantes,<br />

estes responderão ou se defenderão por sua vez, alcançando-se algum tipo de compromisso. Foi-me<br />

explicado que, desde o começo, um anfitrião depois do outro vai repreender os visitantes por suas más<br />

ações – fazendo-os, por isso, sofrer –; essa é a fala forte, perigosa e efetiva (wã wayu or wã nakri). A

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