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Cósmica cosmética | Bertrand Prévost | <strong>SPECIES</strong> n1 | 37<br />
O que Simmel entende aqui por “impessoalidade” do paramento, senão o movimento de uma<br />
descorporação 58 ? Falar de “paramento abstrato” significa então que ele não entra em nenhuma relação<br />
mimética ou de imitação formal com o corpo adornado, ou, ainda melhor, que ele ganha em elegância o<br />
que perde em semelhança com aquilo que enfeita. Tal abstração expressa a autonomia de um paramento<br />
que não tem necessidade de qualquer suporte para existir. Ao pé da letra, diremos que o paramento é<br />
incorporal, no exato sentido em que os estoicos pensaram o incorporal como puro efeito, nem ativo,<br />
nem passivo como o corpo, mas produzindo-se na superfície dos corpos numa sóbria neutralidade. 59<br />
O paramento não existe, portanto, como os corpos; ele subsiste em sua superfície, sempre autônomo<br />
e exterior. É dizer, o paramento não se incorpora, como desejaria constantemente a fantasia ocidental,<br />
mas descorpora o corpo. Jean-Clet Martin insistiu muito bem sobre esse “charme incorporal” do paramento<br />
que expõe o corpo por vezes até o êxtase. 60 E se há uma “gramática do paramento” (como se fala<br />
de uma “gramática do ornamento”), será preciso dizer que o paramento não é nem substantivo (corpo<br />
ou coisa), nem adjetivo (qualidade), mas sempre verbo infinitivo: ele não qualifica nem substancializa o<br />
corpo, ele o infinitiza. É-nos sem dúvida muito difícil apreender semelhante natureza incorporal, presos<br />
como estamos às propriedades objetivas das coisas, bem como a suas qualidades formais e materiais.<br />
Falar de um paramento no infinitivo, postular que o paramento infinitiza o corpo, é considerar seus<br />
atavios como inúmeros motivos abstratos que o virtualizam, se é verdade que “a vestimenta humana<br />
é um corte no interior do homem, não entre o corpo e o exterior, mas entre o corpo anatômico e um<br />
corpo protético e puramente virtual”. 61<br />
Ora, são esses acontecimentos incorporais que consagram os paramentos a um destino cósmico,<br />
que traçam uma continuidade real com o mundo. A partir deste ponto, abandonamos o regime dos<br />
choques, essa fratura extensiva entre corpo e paramento, para penetrar na rede das continuidades cósmicas,<br />
dos devires-mundo. “Em toda cosmética, a fim de evidenciar nossa individualidade”, escreve com<br />
muita propriedade Emanuele Coccia, prolongando as análises de Simmel, “nos confundimos com um<br />
traço do mundo (um pouco de pó colorido, alguma pedra, um metal precioso, uma fazenda de tecido<br />
bem cortada) que não tem nada a ver conosco (nem segundo o ser nem segundo a geração, nem segundo<br />
a forma nem segundo a matéria)”. 62 Essa continuidade não se deve, portanto, apenas a uma questão<br />
58<br />
[N.T.: preferiu-se traduzir décoporation e décorporer, não dicionarizados por Le Robert nem pelo CNTRL, pelos<br />
igualmente não-dicionarizados descorporação e descorporar, já que desincorporar remete antes a um contexto de espiritualizar-se,<br />
desencarnar-se, de tom místico ou cristão (mortificação da carne). Além disso, descorporar lembra a morfologia<br />
de desfigurar, a cujo sentido parece se aproximar, e opõe-se mais bem a incorporar.]<br />
59<br />
Sobre os incorporais estoicos, ver o sempre pertinente estudo de E. Bréhier. La théorie des incorporels dans l’ancien<br />
stoïcisme. Paris: Vrin, 1928 [ed. bras.: A teoria dos incorporais no estoicismo antigo. Tradução de F. Padrão de Figueiredo<br />
e J. E. Pimentel Filho. Belo Horizonte: Autêntica, 2012]. Sabemos, além disso, a sorte que Gilles Deleuze reservou a<br />
esses incorporais, notadamente na teoria do evento de sua Logique du sens. Paris: Minuit, 1969 [ed. bras.: Lógica do<br />
sentido. Tradução de Luiz Roberto Salinas Fortes. 4. ed. 2. reimp. São Paulo: Perspectiva, 2006].<br />
60<br />
Ver J.-C. Martin. Parures d’Éros. Un traité du superficiel. Paris: Kimé, 2003.<br />
61<br />
Ibid., p. 129.<br />
62<br />
E. Coccia. La Vie sensible. Tradução ao francês de M. Rueff. Paris: Rivages, 2010. p. 124 (grifo nosso) [ed. bras.: A<br />
vida sensível. Tradução de Diego Cervelin. Desterro: Cultura e Barbárie, 2010. p. 81; trad. modificada].