A cidade e as serras - a casa do espiritismo
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-Já V. Exª vê... Muita miséria! Até lhe chove lá dentro.<br />
E, no pedaço de chão que viam, chão de terra batida, uma mancha úmida<br />
reluzia, da chuva pingada de uma telha rota. A parede, coberta de fuligem, d<strong>as</strong><br />
long<strong>as</strong> fumaraç<strong>as</strong> da lareira, era tão negra como o chão. E aquela penumbra<br />
suja parecia atulhada, numa desordem escura, de trapos, de cacos, de restos de<br />
cois<strong>as</strong>, onde só mostravam forma compreensível uma arca de pau negro, e pôr<br />
cima, pendura<strong>do</strong> dum prego, entre uma serra e uma candeia, um grosso saiote<br />
escarlate.<br />
Então Jacinto, muito embaraça<strong>do</strong>, murmurou abstraidamente:<br />
-Está bem, está bem...<br />
E largou pelo campo para o la<strong>do</strong> <strong>do</strong> alpendre como se fugisse, enquanto<br />
Silvério decerto revelava à rapariga, a presença augusta <strong>do</strong> “fidalgo”, porque a<br />
sentimos, da porta, levantar a voz <strong>do</strong>lorida:<br />
-Ai! Nosso Senhor lhe dê muita boa sorte! Nosso Senhor o acompanhe!<br />
Quan<strong>do</strong> o Silvério, com <strong>as</strong> grandes p<strong>as</strong>sad<strong>as</strong> d<strong>as</strong> su<strong>as</strong> grandes bot<strong>as</strong>, nos<br />
colheu, no meio <strong>do</strong> campo, Jacinto parara, olhava para mim, com os de<strong>do</strong>s<br />
trêmulos a torturar o bigode, e murmurava:<br />
-É horrível, Zé Fernandes, é horrível!<br />
Ao la<strong>do</strong>, o vozeirão <strong>do</strong> Silvério trovejou:<br />
-Que queres tu outra vez, rapaz? Vai para a tua mãe, criatura!<br />
Era o pequeno rotinho, esfaimadinho, que se prendia a nós, num imenso<br />
p<strong>as</strong>mo d<strong>as</strong> noss<strong>as</strong> pesso<strong>as</strong>, e com a confusa esperança, talvez, que del<strong>as</strong>, como<br />
de Deuses encontra<strong>do</strong>s num caminho, lhe viesse afago ou proveito. E Jacinto,<br />
para quem ele mais especialmente arregalava os olhos tristes, e que aquela<br />
miséria, e a sua muda humildade, embaraçavam, acanhavam horrivelmente, só<br />
soube sorrir, murmurar o seu vago: “Está bem, está bem...” Fui eu que dei ao<br />
pequenito um tostão, para o fartar, o despegar <strong>do</strong>s nossos p<strong>as</strong>sos. M<strong>as</strong> como<br />
ele, com o seu tostão bem agarra<strong>do</strong>, nos seguia ainda, como no sulco da nossa<br />
magnificência, o Silvério teve de o espantar, como a um pássaro, baten<strong>do</strong> <strong>as</strong><br />
mãos, e de lhe gritar:<br />
-Já para c<strong>as</strong>a! E leve esse dinheiro à mãe. Roda, roda!...<br />
-E nós vamos almoçar – lembrei eu olhan<strong>do</strong> o relógio. – O dia ainda vai<br />
estar lin<strong>do</strong>.<br />
Sobre o rio, com efeito, reluzia um pedaço de azul lava<strong>do</strong> e lustroso, e a<br />
grossa camada de nuvens já se ia enrolan<strong>do</strong> sob a lenta varredela <strong>do</strong> vento, que<br />
<strong>as</strong> levava, despejad<strong>as</strong> e rot<strong>as</strong>, para um canto escuso <strong>do</strong> céu.<br />
Então recolhemos lentamente para c<strong>as</strong>a, pôr uma vereda íngreme, que<br />
ensinara o Silvério, e onde um leve enxurro vinha ainda, saltan<strong>do</strong> e chalran<strong>do</strong>.<br />
De cada ramo toca<strong>do</strong>, rechovia uma chuva leve. Toda a verdura, que bebera<br />
largamente, reluzia consolada.<br />
Bruscamente, ao sairmos da vereda para um caminho mais largo, entre um<br />
socalco e um renque de vinha, Jacinto parou, tiran<strong>do</strong> lentamente a cigarreira:<br />
-Pois, Silvério, eu não quero mais est<strong>as</strong> horríveis miséri<strong>as</strong> na Quinta.<br />
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