19.04.2013 Views

A cidade e as serras - a casa do espiritismo

A cidade e as serras - a casa do espiritismo

A cidade e as serras - a casa do espiritismo

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

em toda ela nem um <strong>do</strong>s costuma<strong>do</strong>s <strong>as</strong>pectos que fizessem reviver a velha<br />

camaradagem com o meu Príncipe. Logo na antecâmara grandes lon<strong>as</strong> cobriam<br />

<strong>as</strong> tapeçari<strong>as</strong> heróic<strong>as</strong>, e igual lona escondia os estofos d<strong>as</strong> cadeir<strong>as</strong> e <strong>do</strong>s<br />

muros, e <strong>as</strong> larg<strong>as</strong> estantes de ébano da Biblioteca, onde os trinta mil volumes,<br />

nobremente enfileira<strong>do</strong>s como <strong>do</strong>utores num Concílio, pareciam separa<strong>do</strong>s <strong>do</strong><br />

mun<strong>do</strong> pôr aquele pano que sobre eles descera depois de finda a comédia da<br />

sua força e da sua autoridade. No gabinete de Jacinto, de sobre a mesa de<br />

escrita, desaparecera aquela confusão de instrumentozinhos, de que eu perdera<br />

já a memória; e só a Mecânica suntuosa, pôr sobre peanh<strong>as</strong> e pedestais,<br />

recentemente espanejada, reluzia, com <strong>as</strong> su<strong>as</strong> engrenagens, tubos, rod<strong>as</strong>,<br />

rigidezes de metais, numa frieza inerte, na inatividade definitiva d<strong>as</strong> cois<strong>as</strong><br />

desusad<strong>as</strong>, como já dispost<strong>as</strong> num Museu, para exemplificar a instrumentação<br />

caduca dum mun<strong>do</strong> p<strong>as</strong>sa<strong>do</strong>. Tentei mover o telefone, que se não moveu; a<br />

mola da eletri<strong>cidade</strong> não acendeu nenhum lume: tod<strong>as</strong> <strong>as</strong> forç<strong>as</strong> universais<br />

tinham aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong> o serviço <strong>do</strong> 202, como servos despedi<strong>do</strong>s. E então,<br />

p<strong>as</strong>sean<strong>do</strong> através d<strong>as</strong> sal<strong>as</strong>, realmente me pareceu que percorria um museu de<br />

antigüidades; e que mais tarde outros homens, com uma compreensão mais<br />

pura e exata da vida e da Feli<strong>cidade</strong>, percorreriam, como eu, long<strong>as</strong> sal<strong>as</strong>,<br />

atulhad<strong>as</strong> com os instrumentos da supercivilização, e, como eu, encolheriam<br />

desdenhosamente os ombros ante a grande Ilusão que findara, agora para<br />

sempre inútil, arrumada como um lixo histórico, guarda<strong>do</strong> debaixo da lona.<br />

Quan<strong>do</strong> saí <strong>do</strong> 202 tomei um fiacre, subi ao Bosque de Bolonha. E apen<strong>as</strong><br />

rolara momentos pela Avenida d<strong>as</strong> Acáci<strong>as</strong>, no silêncio decoroso, unicamente<br />

corta<strong>do</strong> pelo tilintar <strong>do</strong>s freios e pel<strong>as</strong> rod<strong>as</strong> vagaros<strong>as</strong> esmagan<strong>do</strong> a areia,<br />

comecei a reconhecer <strong>as</strong> velh<strong>as</strong> figur<strong>as</strong>, sempre com o mesmo sorriso, o mesmo<br />

pó-de-arroz, <strong>as</strong> mesm<strong>as</strong> pálpebr<strong>as</strong> amortecid<strong>as</strong>, os mesmos olhos farejantes, a<br />

mesma imobilidade de cera! O romancista da Couraça p<strong>as</strong>sou numa vitória,<br />

fixou em mim o monóculo defuma<strong>do</strong>, m<strong>as</strong> permaneceu indiferente. Os bandós<br />

negros de Madame Verghane, tapan<strong>do</strong>-lhe <strong>as</strong> orelh<strong>as</strong>, pareciam ainda mais<br />

furiosamente negros entre a harmonia de to<strong>do</strong> o branco que a vestia, chapéu,<br />

plum<strong>as</strong>, flores, rend<strong>as</strong> e corpete, onde o seu peito imenso se empolava como<br />

uma onda. No p<strong>as</strong>seio, sob <strong>as</strong> Acáci<strong>as</strong>, espapa<strong>do</strong> em du<strong>as</strong> cadeir<strong>as</strong>, o diretor <strong>do</strong><br />

Boulevard mamava o resto de seu charuto. E num landau, Madame de Trèves<br />

continuava o seu sorriso de há cinco anos, com du<strong>as</strong> pregazinh<strong>as</strong> mais moles<br />

aos cantos <strong>do</strong>s lábios secos.<br />

Abalei para o Grand-Hotel, bocejan<strong>do</strong> – como outrora Jacinto. E findei o<br />

meu dia de Paris, no Teatro d<strong>as</strong> Variedades, estontea<strong>do</strong> com uma comédia<br />

muito fina, muito aclamada, toda faiscante <strong>do</strong> mais vivo parisianismo, em que<br />

to<strong>do</strong> o enre<strong>do</strong> se enrodilhava à volta duma Cama, onde alternadamente se<br />

espojavam mulheres em camisa, sujeitos gor<strong>do</strong>s em ceroul<strong>as</strong>, um coronel com<br />

pap<strong>as</strong> de linhaça n<strong>as</strong> nádeg<strong>as</strong>, cozinheir<strong>as</strong> de mei<strong>as</strong> de seda bordad<strong>as</strong>, e ainda<br />

mais gente, rui<strong>do</strong>sa e saltitante, a esfuziar de cio e de pilhéria. Tomei um chá<br />

melancólico no Julien, no meio de um áspero e lúgubre namoro de prostitut<strong>as</strong>,<br />

fariscan<strong>do</strong> a presa. Em du<strong>as</strong> del<strong>as</strong>, de pele oleosa e cobreada, olhos oblíquos,<br />

144

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!