A cidade e as serras - a casa do espiritismo
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se despenh<strong>as</strong>se, desamparada, uma pilha de livros! Não se franzia uma cortina,<br />
sem que detrás surgisse, hista, uma ruma de livros! E imensa foi a minha<br />
indignação quan<strong>do</strong> uma manhã, corren<strong>do</strong> urgentemente, de mãos n<strong>as</strong> alç<strong>as</strong>,<br />
encontrei, vedada pôr uma tremenda coleção de Estu<strong>do</strong>s Sociais, a porta <strong>do</strong><br />
Water-Closet!<br />
Mais amargamente porém me lembro da noite histórica em que, no meu<br />
quarto, moí<strong>do</strong> e mole dum p<strong>as</strong>seio a Versalhes, com <strong>as</strong> pálpebr<strong>as</strong> poeirent<strong>as</strong> e<br />
meio a<strong>do</strong>rmecid<strong>as</strong>, tive de desalojar <strong>do</strong> meu leito, praguejan<strong>do</strong>, um pavoroso<br />
dicionário de Indústria em trinta e sete volumes! Senti então a suprema fartura<br />
<strong>do</strong> livro. Ajeitan<strong>do</strong>, com murros, os travesseiros, maldisse a Imprensa, a<br />
Facúndia humana... e já me estirara, a<strong>do</strong>rmecia, quan<strong>do</strong> topei, qu<strong>as</strong>e parti a<br />
preciosa rótula <strong>do</strong> joelho, contra a lombada dum tomo que velhacamente se<br />
aninhara entre a parede e os colchões. Com furor e um berro empolguei,<br />
arremessei o tomo afrontoso – que entornou o jarro, inun<strong>do</strong>u um tapete rico de<br />
Daghestan. E nem sei se depois a<strong>do</strong>rmeci – porque os meus pés, a que não<br />
sentia nem o pisar nem o rumor, como se um vento bran<strong>do</strong> me lev<strong>as</strong>se,<br />
continuaram a tropeç<strong>as</strong> em livros no corre<strong>do</strong>r apaga<strong>do</strong>, depois na areia <strong>do</strong><br />
jardim que o luar branquejava, depois na Avenida <strong>do</strong>s Campos Elísios, povoada<br />
e rui<strong>do</strong>sa como numa festa cívica. E, ó portento! Tod<strong>as</strong> <strong>as</strong> c<strong>as</strong><strong>as</strong> aos la<strong>do</strong>s eram<br />
construíd<strong>as</strong> com livros. Nos ramos <strong>do</strong>s c<strong>as</strong>tanheiros ramalhavam folh<strong>as</strong> de<br />
livros. E os homens, <strong>as</strong> fin<strong>as</strong> dam<strong>as</strong>, vesti<strong>do</strong>s de papel impresso, com títulos<br />
nos <strong>do</strong>rsos, mostravam em vez de rosto um livro aberto, a que a brisa lenta<br />
virava <strong>do</strong>cemente <strong>as</strong> folh<strong>as</strong>. Ao fun<strong>do</strong>, na Praça da Concórdia, avistei uma<br />
escarpada montanha de livros, a que tentei trepar, arquejante, ora enterran<strong>do</strong> a<br />
perna em flácid<strong>as</strong> camad<strong>as</strong> de versos, ora baten<strong>do</strong> contra a lombada, dura<br />
como calhau, de tomos de Exegese e Crítica. A tão v<strong>as</strong>t<strong>as</strong> altur<strong>as</strong> subi, para<br />
além da terra, para além d<strong>as</strong> nuvens, que me encontrei, maravilha<strong>do</strong>, entre os<br />
<strong>as</strong>tros. Eles rolavam serenamente, enormes e mu<strong>do</strong>s, recobertos pôr espess<strong>as</strong><br />
crost<strong>as</strong> de livros, de onde surdia, aqui e além, pôr alguma fenda, entre <strong>do</strong>is<br />
volumes mal juntos, um raiozinho de luz sufocada e ansiada. E <strong>as</strong>sim <strong>as</strong>cendi ao<br />
Paraíso. Decerto era o paraíso – porque com meus olhos de mortal argila avistei<br />
o Ancião da Eternidade, aquele que não tem Manhã nem Tarde. Numa claridade<br />
que dele irradiava mais clara que tod<strong>as</strong> <strong>as</strong> claridades, entre fund<strong>as</strong> estantes de<br />
ouro abarrotad<strong>as</strong> de códices, senta<strong>do</strong> em vetustíssimos fólios, com os flocos d<strong>as</strong><br />
infinit<strong>as</strong> barb<strong>as</strong> espalha<strong>do</strong>s pôr sobre resm<strong>as</strong> de folhetos, brochur<strong>as</strong>, gazet<strong>as</strong> e<br />
catálogos – o Altíssimo lia. A fronte super-divina que concebera o Mun<strong>do</strong><br />
pousava sobre a mão superforte que o Mun<strong>do</strong> criara – e o Cria<strong>do</strong>r lia e sorria.<br />
Ousei, arrepia<strong>do</strong> de sagra<strong>do</strong> horror, espreitar pôr cima <strong>do</strong> seu ombro<br />
coruscante. O livro era brocha<strong>do</strong>, de três francos... O Eterno lia Voltaire, numa<br />
edição barata, e sorria.<br />
Uma porta faiscou e rangeu, como se alguém penetr<strong>as</strong>se no Paraíso. Pensei<br />
que um Santo novo chegara da Terra. Era Jacinto, com o charuto em br<strong>as</strong>a, um<br />
molho de cravos na lapela, sobraçan<strong>do</strong> três livros amarelos que a Princesa de<br />
Carman lhe emprestara para ler!<br />
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