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A cidade e as serras - a casa do espiritismo

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Um estofa<strong>do</strong>r de Lisboa vai depois forrar e disfarçar algum buraco... Levamos<br />

livros, uma máquina para fabricar gelo... E é mesmo uma oc<strong>as</strong>ião de pôr enfim<br />

numa d<strong>as</strong> minh<strong>as</strong> c<strong>as</strong><strong>as</strong> de Portugal alguma decência e ordem. Pois não ach<strong>as</strong>?<br />

E então essa! Uma c<strong>as</strong>a que data de 1410... Ainda existia o Império Bizantino!<br />

Eu espalhava, com o pincel, sobre a face, flocos lentos de sabão. O meu<br />

Príncipe acendeu muito pensativamente um cigarro; e não se arre<strong>do</strong>u <strong>do</strong><br />

touca<strong>do</strong>r, consideran<strong>do</strong> o meu preparo com uma atenção triste que me<br />

incomodava. Pôr fim, como se remoesse uma sentença minha, para lhe reter<br />

bem a moral e o suco:<br />

-Então, definitivamente, Zé Fernandes, entendes que é um dever, um<br />

absoluto dever, ir eu a Tormes?<br />

Af<strong>as</strong>tei <strong>do</strong> espelho a cara ensaboada para encarar diverti<strong>do</strong> espanto o meu<br />

Príncipe:<br />

-Ó Jacinto! foi ti, só em ti que n<strong>as</strong>ceu a idéia desse dever! E honra te seja,<br />

menino... Não ced<strong>as</strong> a ninguém essa honra!<br />

Ele atirou o cigarro – e, com <strong>as</strong> mãos enterrad<strong>as</strong> n<strong>as</strong> algibeir<strong>as</strong> d<strong>as</strong><br />

pantalon<strong>as</strong>, vagou pelo quarto, topan<strong>do</strong> n<strong>as</strong> cadeir<strong>as</strong>, embican<strong>do</strong> contra os<br />

postes tornea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> velho leito de D.Galião, num balanço vago, com barco já<br />

desamarra<strong>do</strong> <strong>do</strong> seu seguro ancora<strong>do</strong>uro, e sem rumo no mar incerto. Depois<br />

encalhou sobre a mesa onde eu conservava enfileirada, pôr gradações de<br />

sentimentos, desde o daguerreótipo <strong>do</strong> papá até a fotografia <strong>do</strong> Corocho<br />

perdigueiro, a galeria da minha Família.<br />

E nunca o meu Príncipe (que eu contemplava estican<strong>do</strong> os suspensórios)<br />

me pareceu tão corcova<strong>do</strong>, tão mingua<strong>do</strong>, como g<strong>as</strong>to pôr uma lima que desde<br />

muito and<strong>as</strong>se fundamente liman<strong>do</strong>. Assim viera findar, desfeita em Civilização,<br />

naquele super-requinta<strong>do</strong> magricela sem músculo e sem energia, a raça<br />

fortíssima <strong>do</strong>s Jacintos! Esses guedelhu<strong>do</strong>s Jacintões, que n<strong>as</strong> su<strong>as</strong> alt<strong>as</strong> terr<strong>as</strong><br />

de Tormes, de volta de bater o mouro no Sala<strong>do</strong> ou o c<strong>as</strong>telhano em Valverde,<br />

nem mesmo despiam <strong>as</strong> fusc<strong>as</strong> armadur<strong>as</strong> para lavar <strong>as</strong> su<strong>as</strong> cãs e amarrar a<br />

vide ao olmo, edifican<strong>do</strong> o Reino com a lança e com a enxada, amb<strong>as</strong> tão rudes<br />

e rij<strong>as</strong>! E agora ali estava aquele último Jacinto, um Jacintículo, com a macia<br />

pele embebida em arom<strong>as</strong>, a curta alma enrodilhada em Filosofi<strong>as</strong>, trava<strong>do</strong> e<br />

suspiran<strong>do</strong> baixinho na miúda indecisão de viver.<br />

-Ó Zé Fernandes, quem é essa lavadeirona tão rechonchuda?<br />

Estendi o pescoço para a fotografia que ele erguera de entre a minha<br />

galeria, no seu honroso caixilho de pelúcia escarlate:<br />

-Mais respeito, Sr. D. Jacinto... Um pouco mais de respeito, cavalheiro!... É<br />

minha prima Joaninha, de San<strong>do</strong>fim, da C<strong>as</strong>a da Flor da Malva.<br />

-Flor da Malva – murmurou o meu Príncipe. – É a C<strong>as</strong>a <strong>do</strong> Condestável, de<br />

Nun’Álvares.<br />

-Flor da Rosa, homem! A C<strong>as</strong>a <strong>do</strong> Condestável era na Flor da Rosa, no<br />

Alentejo... Essa tua ignorância trapalhona d<strong>as</strong> cois<strong>as</strong> de Portugal!<br />

O meu Príncipe deixou escorregar molemente a fotografia da minha prima<br />

de entre os de<strong>do</strong>s moles – que levou à face, no seu gesto horren<strong>do</strong> de palpar<br />

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