criança e consumo
Crianca-e-Consumo_10-anos-de-transformacao
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Há ainda um ponto que eu gostaria de colocar antes de concluir esta<br />
primeira parte: o processo de diálogo e ação comunicativa, principalmente<br />
em se tratando de <strong>criança</strong>s, deve ser guiado pela “pergunta”, que<br />
é a estratégia para fazer as pessoas (no caso, as <strong>criança</strong>s) pensarem. Paulo<br />
Freire, ao discutir as práticas pedagógicas, previne que devemos evitar<br />
três “tentações”: 1) a do autoritarismo, prática que implica que alguém<br />
sabe mais que o outro, e esse que sabe é o que deve dizer como as coisas<br />
são e o que se deve fazer; 2) situação oposta: quem sabe é sempre<br />
o “inferior”, o pobre, o trabalhador – no caso, a <strong>criança</strong> (quantos pais<br />
que se rendem aos mínimos sinais de desejos dos filhos?); 3) a tentação<br />
do espontaneísmo, que insiste que não se deve fazer nada, só esperar,<br />
pois no momento oportuno e adequado “a faísca vai incendiar”. Freire,<br />
a partir de sua experiência, mostra que essas três tentações dificilmente<br />
levam as pessoas a tomar consciência de si mesmas e do mundo, que seria<br />
preciso esperar séculos para que as coisas acontecessem. Além disso, ele<br />
questiona se é aceitável deixar pessoas sofrendo por tempos. Por fim,<br />
superando as limitações dessas três posturas, ele sugere uma prática que<br />
as evita: fazer a pergunta que liberta. Ao refletir, percebemos que coisa<br />
extraordinária é a pergunta. Ela não ofende e deixa a porta aberta para<br />
um crescimento mútuo.<br />
Concluindo, mesmo diante de uma <strong>criança</strong> bem nova – com quem<br />
Tugendhat fez o teste –, é possível perguntar. Perguntar não ofende, não<br />
implica autoritarismo, incita a pessoa a pensar e a agir. Essa é a prática<br />
libertadora. Pode ser que a <strong>criança</strong> tenha dificuldade de pensar. Aliás, isso<br />
é uma hipótese, mas sabemos o que se passa naquela cabecinha quando<br />
fazemos uma pergunta e percebemos um olhar brilhante e surpreso? E<br />
quantas vezes as respostas nos surpreendem e nos deixam sem saber o<br />
que dizer? Elas nos revelam coisas que nunca imaginaríamos...<br />
Nessa prática, podemos fazer a <strong>criança</strong> “descentrar-se”; despertar<br />
nela a compaixão, o “sentir junto”; fazê-la colocar-se no lugar do outro<br />
que sofre, no lugar daquele em quem ela bateu, daquele que chora. Levinas<br />
definiu ética como “o olhar do outro”. A pergunta que Tugendhat<br />
fazia: “Você gostaria que fizessem isso com você?”.<br />
ÉTICA E CONSUMO<br />
Nesta segunda etapa está problematizada, de maneira rápida, a questão<br />
do <strong>consumo</strong> relacionado à ética. Como sempre, existem ao menos duas<br />
partes: a parte que se vê e a que permanece oculta. A que se mostra, ao<br />
falarmos de <strong>consumo</strong>, é que ninguém vive sem consumir. Somos seres<br />
humanos em contínuo processo de assimilação do mundo. Há o <strong>consumo</strong><br />
e o “prossumo”. Somos, ao mesmo tempo, produtores e consumidores.<br />
Há um <strong>consumo</strong> que até nos torna cidadãos, mas há também um <strong>consumo</strong><br />
que nos diminui, que nos limita, quanto não nos escraviza. O primeiro é<br />
o <strong>consumo</strong>; o segundo, o consumismo.<br />
Examinando o desenvolvimento das formações sociais, podemos<br />
constatar que houve um momento em que o <strong>consumo</strong> desviou-se de sua<br />
rota e começou a assumir uma dimensão problemática, que dificilmente<br />
poderia ser considerada autêntica ou coerente. Foi quando, no desenvolvimento<br />
de nosso modo de produção capitalista, o ser humano deixou de<br />
ser o centro, o objetivo, e transformou-se em meio para outros objetivos,<br />
sendo o principal deles o lucro, que passou, tiranicamente, a dominá-lo.<br />
Entendemos isso ao analisar os modos de produção que tornaramse<br />
dominantes no Ocidente principalmente nos últimos dois séculos.<br />
A realidade do <strong>consumo</strong> é irmã gêmea da realidade do supérfluo. Toda<br />
análise dos modos de produção capitalista e estatista vai detectar um<br />
ponto crítico no desenvolvimento dessas sociedades: o momento em que<br />
se começou a produzir além do necessário. Como o critério não é mais o<br />
bem-estar da pessoa nem o bem comum da sociedade, mas o lucro, as<br />
pessoas e o bem comum passaram ao segundo plano.<br />
Em vista da produção, faz-se tudo o que é possível para gerar lucro. A<br />
produção é orientada não mais para satisfazer a população, mas visando<br />
ao lucro de grandes empresas ou ao poder político de Estados e países.<br />
Em ambos os casos, o que constatamos, dolorosamente, é como a<br />
natureza foi saqueada. Serge Moscovici mostrou em seu livro Natureza:<br />
para pensar a ecologia como o pensamento moderno, pai e inspirador do<br />
modo de produção, tanto capitalista como estatista, passou a pensar o<br />
ser humano alheio à natureza, como se pudesse subsistir sem ela ou fora<br />
dela; como a invadiu, a saqueou e, através de uma ciência sem ética e sem<br />
limites, transfomou-a em seu próprio algoz. Os espectros que rondam<br />
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