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criança e consumo

Crianca-e-Consumo_10-anos-de-transformacao

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de discussões exaustivas, abertas e transparentes, inclusive por meio de<br />

consultas públicas. À sociedade cabe fiscalizar e denunciar os eventuais<br />

excessos do Estado. Esse questionamento, porém, precisa ser feito sempre<br />

de forma isenta, honesta e responsável, sem recurso a argumentos falaciosos<br />

ou diversionistas. 16 Assim, quem acusa o Estado de intervencionista<br />

tem o ônus de demonstrar em que consiste exatamente o abuso praticado,<br />

qual é o desvio de finalidade de determinada medida (sendo importante<br />

lembrar a possibilidade de correção perante o poder Judiciário).<br />

Cabe insistir, no entanto, que é ingenuidade ou má-fé questionar<br />

suposto autoritarismo estatal sem se preocupar, na mesma medida, com<br />

a ação poderosa de lobbies em prol de interesses privados junto às autoridades<br />

e ao Congresso Nacional, quando sabemos que esses grupos<br />

são capazes de desvirtuar sua atuação em favor da saúde pública. Nossa<br />

Constituição afirma que a ordem econômica tem por fim assegurar a todos<br />

existência digna, conforme os ditames da justiça social. Acontece que os<br />

conflitos que envolvem interesses econômicos em geral são resolvidos em<br />

contexto de inacreditável disparidade de forças. De um lado, entidades<br />

empresariais contam com formidável capacidade de articulação política,<br />

com acesso imediato aos gabinetes de legisladores e governantes; podem<br />

comprar espaço na mídia, promover campanhas de opinião pública,<br />

patrocinar congressos de juízes e de promotores, contratar pareceres<br />

jurídicos e advogados influentes e até usar opiniões de acadêmicos para<br />

manipular a verdade científica sobre seus produtos e serviços. De outro,<br />

os movimentos sociais e as organizações não governamentais defendem<br />

suas causas com extrema dificuldade, a partir de escassos recursos. Infelizmente,<br />

em muitos casos, os respectivos lobbies fazem-se ouvir na<br />

proporção de seu poder econômico, e nem sempre os meios de comunicação,<br />

pressionados pelos anunciantes, dão voz àqueles que contestam<br />

seus interesses corporativos – é a censura do anunciante. Nesse contexto,<br />

as conquistas sociais avançam lentamente.<br />

O debate sobre regulamentação deveria ser travado em ambiente de<br />

confiança e boa-fé, a partir da convicção de que nem o Estado brasileiro é<br />

hoje aquele Leviatã obcecado por podar as liberdades individuais nem os<br />

dirigentes das grandes corporações são sempre e apenas inescrupulosos<br />

capitalistas selvagens.<br />

Conforme demonstrado, a interferência estatal para prevenir o <strong>consumo</strong><br />

abusivo de determinados alimentos justifica-se na medida em que<br />

a obesidade tornou-se um dos mais graves problemas de saúde pública<br />

no Brasil, adquiriu caráter epidêmico, está fora de controle, apresenta<br />

índices crescentes e atinge mais gravemente a população de baixa renda.<br />

O debate deixa de ser apenas ético ou ideológico, deixa de ser subjetivo,<br />

e passa a ser jurídico-institucional – afinal de contas, é função<br />

do Estado implementar políticas públicas preventivas em prol da saúde<br />

da população e em defesa do consumidor, nos termos do artigo 196 da<br />

Constituição Federal.<br />

Ora, pode o Estado omitir-se diante de evidências de que as pessoas,<br />

sobretudo as <strong>criança</strong>s, estão ficando doentes por influência direta da<br />

publicidade maciça que estimula o <strong>consumo</strong> excessivo de alimentos não<br />

saudáveis? Será que o modelo do Estado do bem-estar social está equivocado<br />

e que deveríamos retroceder ao modelo laissez-faire do século XIX?<br />

Devemos revogar o artigo 196 da Constituição?<br />

O que esperam os críticos da regulamentação? Que fiquemos de braços<br />

cruzados aguardando que as empresas deixem, espontaneamente, de<br />

estimular o lucrativo <strong>consumo</strong> exagerado de alimentos de baixa qualidade<br />

nutricional enquanto as doenças relacionadas a essa dieta continuam<br />

aumentando? Será que as medidas tomadas com sucesso para restringir<br />

o tabagismo foram equivocadas e deveríamos liberar a publicidade de<br />

cigarros, assim como a de remédios?<br />

O que está por trás das tentativas de reduzir e simplificar o problema?<br />

A quem interessa desqualificar políticas públicas elaboradas para<br />

combater problemas de saúde pública com acusações levianas e clichês?<br />

Será que devemos nos curvar à soberania de um mercado onipotente?<br />

Será que o empreendimento capitalista deve ser tratado como um fim<br />

em si mesmo, e ao Estado e à sociedade cabe apenas impedir que haja<br />

obstáculos às oportunidades de lucrar? Devemos mesmo mercantilizar<br />

nossos costumes, negociar nossos valores e concluir que os vendilhões<br />

do Templo estavam certos?<br />

O processo de harmonização das relações econômicas e sociais deve<br />

basear-se na discussão sobre a razoabilidade e a proporcionalidade de<br />

cada intervenção estatal, com a verificação de sua imprescindibilidade<br />

294 • CRIANÇA E CONSUMO – 10 ANOS DE TRANSFORMAÇÃO LEGISLAÇÃO • 295

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