criança e consumo
Crianca-e-Consumo_10-anos-de-transformacao
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A conclusão a que se chega ao abordar esses três dispositivos constitucionais<br />
– artigo 5º, IX, artigo 170 e artigo 220 – é que, ao mesmo tempo<br />
que a Constituição Federal garante a liberdade de expressão, ela impõe o<br />
dever de respeito à dignidade do consumidor (e da <strong>criança</strong> consumidora<br />
em especial) por força do artigo 5º, inciso XXXII. Verifica-se, ainda, que<br />
existem garantias constitucionais que impõem limites específicos ao pleno<br />
exercício da liberdade de expressão, no caso, a proteção da <strong>criança</strong>. A<br />
leitura sistemática da Constituição Federal embasa tal argumento: 1) ao<br />
inciso IV do artigo 5º contrapõe-se o inciso XXXII do mesmo artigo; 2) ao<br />
caput do artigo 170 contrapõe-se o princípio fixado em seu inciso V; e 3)<br />
à norma geral do artigo 220 contrapõe-se a regra específica do artigo 227.<br />
Como compatibilizar tais dispositivos constitucionais na prática?<br />
Qual é o limite para os casos concretos que envolvem os princípios da<br />
defesa da liberdade de expressão e da proteção da <strong>criança</strong>? No fundo, a<br />
pergunta é “Como aplicar a proporcionalidade?”.<br />
DUAS PALAVRAS IMPORTANTES: A AUSENTE E A PRESENTE<br />
Não resta dúvida de que a Constituição Federal garante a liberdade de<br />
expressão em diversas formas. O caput do artigo 220 é pontual em relação<br />
à liberdade de manifestação de pensamento, à criação, à expressão<br />
e à informação, respeitado o que consta na Constituição como um todo.<br />
Entendemos, entretanto, que a garantia de tais liberdades de expressão<br />
não se estende à liberdade de se expressar comercialmente, encontrando<br />
limites na própria legislação. Na já citada lista detalhada no caput do artigo<br />
220 da Constituição Federal – manifestação de pensamento, criação,<br />
expressão e informação – não consta a expressão liberdade de expressão<br />
comercial. É importante ter clareza de que a manifestação publicitária<br />
não tem como finalidade divulgar ideias, fatos ou questionar valores.<br />
Não se trata de expressão meramente artística ou jornalística. O discurso<br />
publicitário sempre tem como finalidade vender produtos, ou seja, é um<br />
instrumento de estímulo ao <strong>consumo</strong>. Não tem um fim em si, mas um objetivo<br />
mercantil. E, se a livre iniciativa (artigo 170, caput da Constituição<br />
Federal) encontra limites nos diversos incisos do próprio artigo, inclusive<br />
no que diz respeito à defesa do consumidor (V), qual é a fundamentação<br />
jurídica para afirmar que a liberdade de expressão comercial não pode<br />
encontrar limites fixados na legislação?<br />
Além disso, a Constituição Federal, quando se refere à proteção da<br />
<strong>criança</strong>, utiliza uma forte expressão: com absoluta prioridade (artigo 227,<br />
caput). Esta, escrita na Constituição de forma explícita, fixa uma regra<br />
clara: a proteção da <strong>criança</strong> é prioritária e impõe-se diante de outros direitos<br />
previstos na própria Constituição. Não se trata aqui de um princípio<br />
sujeito à composição com outros princípios constitucionais, mas de regra<br />
constitucional vinculante. Não existe necessidade de pensar em como<br />
trabalhar, no caso concreto, a ponderação entre os dois princípios, 13 mas<br />
de antepor um princípio (liberdade de expressão) a uma regra constitucional<br />
expressa (proteção da <strong>criança</strong>). Não existe choque entre princípio e<br />
regra, devendo ser aplicada a regra constitucional vinculante: a proteção<br />
da <strong>criança</strong> tem prioridade absoluta. Não é necessário ponderar. Porém,<br />
mesmo àqueles que defendem tratar-se de dois princípios – liberdade de<br />
expressão e proteção da <strong>criança</strong> –, a própria legislação oferece o instrumento<br />
da ponderação: a absoluta prioridade da <strong>criança</strong>.<br />
Por fim, são duas as palavras importantes: a que está ausente no texto<br />
constitucional, pois a Constituição Federal não utiliza a palavra comercial<br />
quando se refere à liberdade de expressão; e a que se encontra presente no<br />
texto constitucional, uma vez que a Constituição Federal expressamente<br />
utiliza a palavra prioridade quando trata da proteção da <strong>criança</strong> – e acrescenta,<br />
ainda, o qualificativo absoluta. Diante do significado da ausência<br />
de uma palavra e da presença de outra, não é difícil interpretar o texto<br />
constitucional: proteger a <strong>criança</strong> contra o universo da publicidade não<br />
é uma discussão de como decidir a partir de direitos que se sobrepõem,<br />
mas como implementar, nas famílias, na sociedade e no poder público o<br />
dever/poder de priorizar de maneira absoluta essa questão.<br />
CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />
O mundo adulto – apesar de terminadas as ilusões da rebeldia dos<br />
anos 1970, ou talvez por isso mesmo – pode suportar, sem ingenuidade,<br />
as consequências dos valores expostos por uma publicidade como a<br />
da motocicleta Harley Davidson. Mas o fim da ingenuidade exige uma<br />
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