criança e consumo
Crianca-e-Consumo_10-anos-de-transformacao
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Minha primeira experiência em relação à influência da televisão sobre<br />
a população mais pobre aconteceu em janeiro de 1974, quando eu tinha 19<br />
anos e estava no interior do Ceará, em uma pequena cidade chamada Cemoaba.<br />
Éramos todos universitários de São Paulo, envolvidos com o trabalho e o<br />
método de Paulo Freire, pensador exilado do Brasil naquele momento. Com<br />
a presença das lideranças comunitárias locais, nós nos encontrávamos com<br />
pessoas da cidade para falar de temas como saneamento básico, cuidados<br />
na primeira infância, amamentação. A miséria e a fome eram devastadoras.<br />
Assisti à morte de uma jovem mulher no último estágio de desnutrição.<br />
Não havia luz elétrica em Cemoaba, mas na praça central, dentro de<br />
uma construção de cimento que parecia uma caixa, havia um aparelho de<br />
televisão que funcionava com gerador. Era uma “janela para o mundo”.<br />
Nossos encontros com os moradores definiam-se a partir da programação<br />
da Rede Globo, do Jornal Nacional e das novelas.<br />
Nos debates, eu percebia o quanto meninos e meninas de lá se envergonhavam<br />
daquilo que não tinham, daquilo que não eram. Havia uma<br />
sensação de inadequação social semelhante àquela vivida em São Paulo<br />
pelos trabalhadores da construção civil e pelas empregadas domésticas<br />
a quem dávamos aulas de alfabetização. Sua própria cultura era desvalorizada.<br />
Os signos da cidade grande eram incompreensíveis para eles<br />
por um largo tempo, e, no decorrer dos meses, ainda que começassem a<br />
decifrá-los, acentuava-se a vivência de exclusão. Sentiam vergonha de<br />
si mesmos. Como são gerados esses sentimentos?<br />
COMO A CRIANÇA CONSTRÓI SUAS PERCEPÇÕES<br />
No caminho do desenvolvimento emocional, a primeira perda da<br />
<strong>criança</strong> é o fim de seu estado simbiótico com a mãe, é o inevitável contato<br />
com a frustração, o registro da realidade fora do ninho de completude e<br />
prazer. Começam, assim, as vivências de ansiedade e angústia. Multiplicam-se<br />
os conflitos entre desejo (o que essa <strong>criança</strong> quer) e realidade<br />
(que a faz experimentar a frustração). Da dependência e do desamparo<br />
infantis até a relativa autonomia e independência adultas, ela passa por<br />
muitas outras perdas. Mas é justamente a cada confronto com a realidade<br />
que a <strong>criança</strong> mobiliza seus recursos internos em busca de soluções e<br />
aprenderá a elaborar. A cada desafio que enfrenta usando sua capacidade<br />
de pensar, mais ganhos de percepção ela tem. Assim, o alargamento dessa<br />
percepção permite que ela enxergue novas realidades.<br />
Se, frente aos desafios da vida real, o meio em que essa <strong>criança</strong> se desenvolve<br />
a estimula a buscar e usar os próprios recursos, ela se fortalece em<br />
termos de ego. Isso aumenta seu limiar de tolerância à frustração e, como<br />
consequência, ela torna-se menos vulnerável a constituir relações de dependência<br />
para fugir da realidade: drogas legais e ilegais, comportamentos adictos,<br />
entre outros, para preencher a sensação de desamparo frente à realidade.<br />
A clínica psicanalítica com <strong>criança</strong>s permite que elas entendam melhor o<br />
significado e as motivações desses comportamentos, em geral, inconscientes.<br />
A adolescência, com as pulsões sexuais emergindo, traz uma reorganização<br />
dos mecanismos de defesa do ego contra as ansiedades provocadas<br />
por conflitos entre o princípio do prazer e o princípio da realidade.<br />
Acontece aí uma segunda fase de separação das figuras parentais. Cada<br />
membro da família desempenha um papel diferente na estrutura familiar,<br />
adaptando-se às situações de mudança e visando a encontrar um equilíbrio<br />
que cumpra a tarefa específica daquela fase de desenvolvimento. O<br />
adolescente está ligado à estabilidade de sua unidade familiar.<br />
À procura de uma identidade própria e em busca de sentidos e significados<br />
do mundo e de sua existência (“por que sou o que sou?”), o adolescente<br />
estabelece interações complexas com as figuras importantes de sua<br />
vida: os pais e a família, os professores, os amigos e o mundo que o rodeia.<br />
Os grupos de identificação desempenham papel fundamental na vida<br />
da <strong>criança</strong> e, em especial, do adolescente, que se espelha em grupos de<br />
pertencimento no processo de formação de identidade. O destino dessa<br />
necessidade depende muito das possibilidades que lhe são oferecidas<br />
pelo ambiente em que cresce e dos tipos de grupos que estão à disposição.<br />
Amparado, pode sentir-se amado, incluído, apaziguado. Ou pode<br />
soltar a rédea da agressividade, fortalecido pelo poder de grupo e, assim,<br />
facilmente cair nas mãos de interesses que, manipulando sua angústia<br />
e sua vulnerabilidade, oferecem respostas prontas a suas inquietudes.<br />
Os conflitos recalcados da infância são retomados na adolescência e<br />
ampliados em um corpo já desenvolvido. O complexo conflito infantil,<br />
mais doloroso e angustiante, é “eliminado” da consciência na medida do<br />
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