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criança e consumo

Crianca-e-Consumo_10-anos-de-transformacao

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COMPETÊNCIAS ESTÉTICAS<br />

A desconstrução do consumismo não se dará por uma transmissão racionalizada,<br />

reduzida ao ensino, às leis e às campanhas educativas. Por<br />

acontecer no âmbito da cultura, essa possibilidade carece, antes de tudo, de<br />

experienciação, e, nas palavras de Velázquez, “um indivíduo só pode experienciar<br />

por via de seus próprios sentidos” (p. 227). Não se trata, portanto, de<br />

transmitir, mas de criar oportunidades culturais em que a <strong>criança</strong> possa dar<br />

sentido a sua existência, com liberdade de reformular-se adaptativamente.<br />

O paradigma civilizacional capaz de desconstruir a sanha perdulária da<br />

ideologia do consumismo requer uma cultura colaborativa ancestral, um<br />

senso de vida comunitária e, como afirma Maturana, “uma cultura matrística,<br />

na qual homens e mulheres podem participar de um modo de vida centrado<br />

na cooperação não hierárquica” (p. 25). Benedict faz notar que, “em todos<br />

os estudos de costume social, o cerne da questão é que o comportamento em<br />

consideração deve passar pelo buraco da agulha da aceitação social” (p. 158).<br />

Aderir a uma mudança de paradigma nos modos de consumir e de projetar<br />

um sentido de destino, seguindo na contramão do arsenal midiático<br />

onipresente no cotidiano, a oferecer facilidades de diversão e de relacionamento<br />

virtual, carece do que Velázquez chama de “competências estéticas”<br />

nas práticas educativas. “A sociabilidade, isto é, o sentimento de pertença a<br />

uma coletividade, depende, portanto, do embate irracional do sujeito com o<br />

meio” (p. 252). O jogo perceptivo das pessoas nas comunidades virtuais tem<br />

grande valor, mas não deixa de prescindir do mundo social físico. Crescer<br />

dentro da rede, mesmo nas experiências de simulação do real, não cultiva<br />

alimentos nem nos permite usufruir do calor tátil do outro.<br />

Os esforços de cidadania direcionados à valorização da participação da<br />

<strong>criança</strong> na vida cultural encontram barreiras no fato de que a “esfera pública<br />

segue em mão contrária à urgência de politização das grandes questões<br />

sociais”, segundo Bierwagen (p. 79). Citando a filósofa paulista Marilena<br />

Chauí, Bierwagen ressalta que “o princípio fundamental da ideologia é<br />

ocultar partes da realidade que podem ameaçar a história imaginária que<br />

constrói” (p. 79). Logo, é no tergiversar do aparente que ela nutre o sentimento<br />

anticultural em adultos e <strong>criança</strong>s.<br />

Tomando como referência o pensamento de Habermas em que ele<br />

confronta dois setores de comunicação politicamente relevantes – o<br />

sistema de opiniões informais, pessoais, não públicas, e as opiniões formais,<br />

institucionalmente autorizadas –, convém observar que<br />

as opiniões informais diferenciam-se segundo o seu grau de obrigatoriedade:<br />

no nível mais baixo desse setor de comunicação, passam a ser<br />

verbalizadas as questões culturais que parecem óbvias e indiscutíveis,<br />

os resultados, bastante difíceis, do processo de aculturação, normalmente<br />

excluído da própria reflexão. (p. 284)<br />

Depois, seguindo a escala proposta pelo pensador germânico, vem a<br />

história pessoal; e somente no terceiro nível encontram-se as obviedades<br />

da indústria cultural e seu bombardeio publicitário, induzindo gostos e<br />

preferências, apoiados na natureza coercitiva das opiniões grupais. A<br />

priorização da fofoca, do boato e das notícias que banalizam o viver como<br />

matéria-prima para refabricação de produtos da ideologia do consumismo<br />

é a tônica de validação do circuito de opiniões midiáticas, mesmo quando<br />

aparentam criticá-lo. Ao instigar a precocidade da <strong>criança</strong>, o mercado<br />

naturaliza sua adultização, de forma a tê-la, a possuí-la, como número<br />

de consumidores fidelizados.<br />

A distinção de seres “aprendentes” fica comprometida à medida que<br />

as <strong>criança</strong>s são seduzidas ao conforto alienante do sofá, das áreas confinantes<br />

e da negação da rua, perdendo diante disso a oportunidade de<br />

viver seu tempo, imaginando cenários e situações articuladas pela noção<br />

do belo. Para esquivar-se desse ataque nocivo, advoga Velázquez que a<br />

sociedade precisa dar à arte a importância que ela merece, considerando<br />

“o equilíbrio de sua organicidade interna e ambiental” (p. 245). O<br />

acesso aos fatos culturais estéticos, artísticos e não artísticos possibilita<br />

aos mais novos conduzir-se rumo ao meio que for, pelo viés orgânico da<br />

construção relacional.<br />

No esforço em favor do renascer do propósito da estética, em um<br />

tempo no qual a produção e a reformulação de sentido passaram a depender<br />

“de promessas publicitárias de felicidade pasteurizada e embalada a<br />

vácuo” (p. 25), Velázquez faz um contraponto ao “impulso marqueteiro<br />

que levará ao <strong>consumo</strong> irrefletido” (p. 26), abordando a estética como<br />

elemento-chave do processo educativo que tem na cultura seu impulso<br />

256 • CRIANÇA E CONSUMO – 10 ANOS DE TRANSFORMAÇÃO CULTURA • 257

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