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criança e consumo

Crianca-e-Consumo_10-anos-de-transformacao

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Brincadeira é imagem em movimento; brincar, imaginação “concreta”.<br />

Pelo brincar e pela brincadeira as <strong>criança</strong>s de qualquer lugar do mundo<br />

estabelecem identificações umas com as outras e com a fauna e a flora.<br />

Sentem-se parte da cultura e da natureza. Comunicam-se por animismo e<br />

por gestos, olhares e performances lúdicas.<br />

Os animais de estimação falam sem precisar de palavras, porque sabem<br />

a língua do brincar, além de demonstrarem sentimentos e terem<br />

habilidades sociais. A <strong>criança</strong> brinca com o animal de estimação como<br />

brinca com um brinquedo. Nesse processo de descoberta, ao relacionarse<br />

com uma boneca, acha que ela sente fome; quando tenta “desmontar”<br />

um bicho de estimação, às vezes nem percebe que ele sente dor.<br />

A narrativa do brincar está associada ao universo de vivências da<br />

<strong>criança</strong>, à literatura a que tem acesso, à música que escuta, aos lugares<br />

por onde anda, ao que vê, ao que toca, ao que cheira e ao que saboreia.<br />

Ao falar sozinha, ela conta a história das significações intelectuais, das<br />

interpretações emocionais e das sensações cotidianamente processadas<br />

na intimidade de seus pensamentos e sentimentos.<br />

A existência de uma infância livre do consumismo passa pela racionalidade,<br />

mas passa também pelos significados abstratos, pelas sugestões<br />

mágicas, pelo pensamento sagrado e pelo código de sobrevivência do instinto;<br />

passa por uma relação profunda e sistêmica com a ideia de nascimento<br />

e morte, pela sensação de processo e meio circulante. A plenitude está na<br />

insuficiência do indivíduo, que se realiza na complementaridade com o<br />

exterior, o que leva a <strong>criança</strong> a apropriar-se das experiências alheias.<br />

Na fuga das limitações do instinto, a humanidade obteve poder sobre<br />

os objetos. Fischer lembra que “uma pedra que anteriormente não<br />

era útil adquiria utilidade e era recrutada para o serviço do homem ao<br />

se transformar em instrumento” (p. 37). Eis uma válvula de escape do<br />

consumismo: fazer atividades com a <strong>criança</strong> de forma que ela tenha em<br />

mente que os objetos são dela, não ela dos objetos. Se essa descoberta<br />

virar brincadeira, está destrancada a possibilidade de conexão de fuga<br />

da <strong>criança</strong> para o mundo circundante. Para isso, ela necessita, todavia,<br />

de um mundo ao redor, um mundo fora da ordem configurada pelo consumismo;<br />

seu lugar na cultura, no qual possa projetar novos sistemas de<br />

identificação, de representação, outras aspirações.<br />

No mundo do consumismo, da massificação, o indivíduo se esforça<br />

para se matricular nos padrões estabelecidos, e isso agride suas necessidades<br />

e seus desejos mais autênticos, pois no fundo ninguém merece ser<br />

representado na homogeneidade. É dramático no comportamento atual<br />

termos, de um lado, equipamentos com grande potencial de conectividade<br />

e, de outro, indivíduos abestalhados, ocos, abduzidos de vontade própria,<br />

embora capazes de mexer com destreza em sofisticados aparelhos.<br />

O consumismo é uma ideologia que se apresenta como categorizadora<br />

social entre os que têm e os que não têm poder aquisitivo, os<br />

que podem esbanjar e os que necessitam de sobras para sobreviver. Se<br />

quisermos <strong>criança</strong>s livres desse sistema de crenças, teremos de contribuir<br />

para que escapem das identificações exclusivas com a técnica e<br />

devolvê-las à vida comunitária, ao mundo da cultura. Não adianta lutar<br />

contra o consumismo sem ampliar as ofertas culturais. A <strong>criança</strong> presa<br />

ao consumismo, a <strong>criança</strong> de vida opaca, sem grandeza, sem um quê<br />

nem um porquê, precisa assimilar as características do diferente, que<br />

ela nem desconfia poder desejar.<br />

É comparando estilos de vida que a <strong>criança</strong> encontra sua estabilidade<br />

individual, sua centralidade, seu equilíbrio como pessoa. Seja em que<br />

plataforma for, e a despeito das sombras dominantes dos best-sellers, as<br />

artes e a literatura ainda são excelentes plataformas motivadoras desse<br />

ser pessoa: “Toda arte é condicionada pelo seu tempo e representa a humanidade<br />

em consonância com as ideias e aspirações, as necessidades e<br />

as esperanças de uma situação histórica particular”, afirmou Fischer (p.<br />

17); entretanto, ela permite um trânsito atemporal pelo querer criativo<br />

em busca de mudar sempre.<br />

No consumismo, do ponto de vista do adulto, a <strong>criança</strong> ideal é aquela<br />

que para de chorar com a promessa de um presente; do ponto de vista do<br />

mercado, a que exerce influência sobre as compras feitas pelos adultos;<br />

do ponto de vista infantil, talvez tudo o que ela queira seja se livrar da<br />

sensação de invasora do mundo adulto e ter um lugar onde desenvolver<br />

sua existência no tempo presente. Se construir hipóteses em cenas imaginativas<br />

já faz parte do processo de autodesenvolvimento infantil, ao se<br />

sentirem oprimidos pelas agendas quase executivas que lhes são impostas,<br />

meninas e meninos retiram-se mais comumente do cotidiano objetivo.<br />

264 • CRIANÇA E CONSUMO – 10 ANOS DE TRANSFORMAÇÃO CULTURA • 265

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