You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
DESLIGANDO O GRAVADOR: RAÇA, PRESTÍGIO E RELAÇÃO CENTRO/PERIFERIA NAS CONSTRUÇÕES DE<br />
HIERARQUIAS ENTRE DRAG QUEENS<br />
Aí, de lá pra cá, até hoje a drag acredita nisso, ela acha que foi eu<br />
mesmo que peguei o CD. E eu nunca tentei provar o contrário,<br />
porque eu acho que um dia esse CD ainda vai aparecer, ou a<br />
verdade vai aparecer. Ela não conversa muito comigo. Ela já me<br />
queimou em alguns lugares, assim... em algumas boates, já falou<br />
mal de mim, assim. Só que, eu acho assim ó: eu não posso me<br />
vingar. Eu não posso querer o mal dela, porque ela tá sendo<br />
injusta. E eu acho que injustiça se paga com injustiça. Eu penso<br />
assim. Um dia... ela viu que ela errou. Já conversamos várias<br />
vezes. Ela disse assim: “olha, isso aí é passado”. Aí, uma outra<br />
vez ela veio pra cá. E, engraçado, já veio várias drags de Riacho<br />
pra cá, e é toda vez que ela vem pra cá, some uma coisa dela. Aí,<br />
a última vez que ela veio, uma das últimas vezes, sumiu um<br />
perfume dela, que tinha um restinho de perfume, e sumiu o<br />
perfume dentro do camarim. Só que ela nunca chegou na minha<br />
cara e me acusou. Ela conta pra outras pessoas, aqui em<br />
Pessegueiro. “Ai! Sumiu um perfume, eu acho que foi a Deborah<br />
que pegou”. Então, agora, tudo que some dela, ela acha que foi<br />
eu. Só que também nunca ninguém viu, nunca ninguém sentiu o<br />
cheiro meu. Eu vou pegar, eu vou pegar e vou jogar fora? Eu<br />
vou dar pra outra pessoa? Não tem como dar pra outra pessoa.<br />
Não é verdade? Se eu der pra uma outra drag, pra uma outra<br />
amiga, uma hora assim: “ah! A Deborah que me deu”, tá<br />
entendendo? O CD seria a mesma coisa. E até hoje eu não sei que<br />
perfume que é. E ela também nunca chegou na minha cara e<br />
falou, ela acusa uma pessoa. Eu acho engraçado que, sempre<br />
quando ela vem pra cá, some alguma coisa dela. Eu já acho que<br />
isso já virou palhaçada. Sempre só dela que some, entendeu? Aí,<br />
só que eu fico na minha, eu acho assim: minha consciência sempre<br />
teve limpa, já trabalhei na mesma casa que ela, assim no mesmo<br />
dia. Tudo assim. Eu cumprimento: “oi! Tudo bem?”. Mas<br />
também não fico de frescura” (Pedro, negro, 33 anos, 8 anos<br />
de atuação profissional).<br />
Para além da acusação de roubo e da autodefesa narradas<br />
pelas drags envolvidas, há aspectos nessa história que<br />
evidenciam diversas nuances de hierarquização, as quais são<br />
encontradas na sociedade e que também se tornam claras na<br />
medida em que se olha mais cuidadosamente para aquilo que<br />
está sendo dito por todas essas drags.<br />
A narrativa se estrutura da seguinte forma: uma drag “de<br />
fora” e “famosa” acusa uma drag “local”, “com projeção local”,<br />
de roubo no camarim. Embora a drag que acusa seja branca e a<br />
acusada seja negra, na narrativa sobre o roubo isso não aparece<br />
285