Literatura e Jornalismo: Fato e ficção em Abusado e Cidade de Deus
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Guanabara. Antes <strong>de</strong> as obras ser<strong>em</strong> concluídas, o local foi utilizado pelo<br />
governo para abrigar as vítimas <strong>de</strong> uma enchente que <strong>de</strong>ixou milhares <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>sabrigados <strong>em</strong> 1966. Estes moradores <strong>de</strong> diversas áreas pobres do Rio<br />
foram r<strong>em</strong>ovidos para <strong>Cida<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong> <strong>Deus</strong> – “Por dia, durante uma s<strong>em</strong>ana,<br />
chegavam <strong>de</strong> trinta a cinquenta mudanças, do pessoal que trazia no rosto<br />
e nos móveis as marcas das enchentes.” (p. 18) – e se reintegraram,<br />
reinventado laços, num ambiente que ainda não conhecia a<br />
<strong>de</strong>sagregação provocada pela violência do tráfico <strong>de</strong> drogas.<br />
A vida mais ou menos pacífica dos moradores antes da guerra<br />
entre quadrilhas <strong>de</strong> traficantes impor o terror, entretanto, também é<br />
marcada pela violência e pela brutalida<strong>de</strong>, manifesta <strong>em</strong> atos individuais –<br />
o esquartejamento <strong>de</strong> um recém-nascido, por ex<strong>em</strong>plo –, nos tiroteios<br />
entre policiais e bandidos, nas balas perdidas <strong>em</strong> corpos inocentes, na<br />
revolta coletiva dos moradores contra um policial assassino, tripudiando<br />
sobre seu corpo morto levado <strong>em</strong> cortejo numa carroça pelas ruas da<br />
favela.<br />
A paisag<strong>em</strong> bucólica apresentada no início do primeiro capítulo<br />
é retomada <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> páginas à frente numa <strong>Cida<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong> <strong>Deus</strong> já <strong>em</strong><br />
franco progresso, com tratores e pás mecânicas reconfigurando a área<br />
<strong>de</strong>sabitada do casarão mal-assombrado. A cena, que suce<strong>de</strong> o cortejo<br />
sinistro do policial, se insere num ponto importante da narrativa e assinala<br />
a transição entre os anos 1960 e 1970 pela inserção <strong>de</strong> um matiz<br />
fantástico que contrasta com a orientação realista predominante. Os<br />
amigos Busca-Pé e Barbantinho, que compartilham o imaginário<br />
urbano/rural da favela povoado por lendas <strong>de</strong> aparições, <strong>de</strong>cid<strong>em</strong> conferir<br />
os boatos sobre o fantasma do casarão:<br />
Já iam <strong>em</strong>bora quando a lua se transformou <strong>em</strong> sol<br />
<strong>de</strong> meio-dia, as casas e os apartamentos <strong>de</strong>ram lugar<br />
a um imenso campo, os outros casarões tomaram a<br />
aparência <strong>de</strong> novos, o rio tornou-se mais largo, com<br />
água pura e jacarés nas margens. Os dois ficaram