Literatura e Jornalismo: Fato e ficção em Abusado e Cidade de Deus
Literatura e Jornalismo: Fato e ficção em Abusado e Cidade de Deus
Literatura e Jornalismo: Fato e ficção em Abusado e Cidade de Deus
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
141<br />
do <strong>de</strong>sfile.” (p. 100). A morte precoce <strong>de</strong> Salgueirinho, atropelado por um<br />
carro <strong>em</strong> marcha-ré, <strong>de</strong>sestabiliza a malandrag<strong>em</strong> <strong>de</strong> <strong>Cida<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong> <strong>Deus</strong>.<br />
Em contraponto ao malandro bom, o bicho-solto Cabeleira que<br />
“<strong>de</strong>s<strong>de</strong> criança vivia nas rodas <strong>de</strong> bandidos e gostava <strong>de</strong> ouvir histórias<br />
<strong>de</strong> assaltos, roubos e assassinatos” (p. 50) pratica crimes <strong>de</strong>ntro da<br />
favela, humilha trabalhadores, faz crianças <strong>de</strong> refém, mata s<strong>em</strong> pena e<br />
s<strong>em</strong> muitos motivos e se torna o bandido mais perigoso <strong>de</strong> <strong>Cida<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong><br />
<strong>Deus</strong>. Mas esta é uma <strong>de</strong>scrição simplificada, porque a narrativa vai aos<br />
poucos pingando a inquietação e o ódio do bandido com sua vida – “ficou<br />
sério, <strong>de</strong>ixando escapar um olhar irado [...] como se foss<strong>em</strong> todos<br />
culpados da <strong>de</strong>sgraça que era sua vida. (p. 27) –, com sua família – “o<br />
pai, aquele merda, vivia <strong>em</strong>briagado nas la<strong>de</strong>iras do morro do São Carlos;<br />
a mãe era puta da zona e o irmão, viado.” (p. 25) – e com o mundo:<br />
“Cabeleira resolveu que não andaria mais duro, trabalhar que n<strong>em</strong><br />
escravo, jamais; s<strong>em</strong> essa <strong>de</strong> ficar comendo <strong>de</strong> marmita, receber or<strong>de</strong>ns<br />
dos branquelos, ficar s<strong>em</strong>pre com o serviço pesado s<strong>em</strong> chance <strong>de</strong> subir<br />
na vida, acordar cedão para pegar no batente e ganhar merreca” (p. 51).<br />
A cena da morte <strong>de</strong> Cabeleira encerra a falta <strong>de</strong> sentido que inquieta sua<br />
vida e <strong>de</strong>lineia os pensamentos perturbados do bandido: “po<strong>de</strong> haver paz<br />
plena para qu<strong>em</strong> o viver fora s<strong>em</strong>pre r<strong>em</strong>exer-se no poço da miséria? [...]<br />
po<strong>de</strong> alguém enxergar o belo com olhos obtusos pela falta <strong>de</strong> tudo <strong>de</strong> que<br />
o ser humano carece?” (p. 202).<br />
Se pela negação ao trabalho se po<strong>de</strong> notar uma aproximação<br />
com o imaginário do malandro que associa trabalho a “coisa <strong>de</strong> otário”, as<br />
coincidências entre o bandido e o malandro terminam aí. A força<br />
agregadora <strong>de</strong> Salgueirinho – figura simbólica e polo positivo da<br />
malandrag<strong>em</strong> na vida dos moradores – e sua “ética malandra” <strong>de</strong> não<br />
cometer assaltos <strong>de</strong>ntro da favela funcionam como uma espécie <strong>de</strong> freio<br />
das atitu<strong>de</strong>s dos criminosos e contrastam com o agir inescrupuloso <strong>de</strong><br />
Cabeleira, que rompe com o “pacto malandro” na comunida<strong>de</strong>.