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Literatura e Jornalismo: Fato e ficção em Abusado e Cidade de Deus

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do <strong>de</strong>sfile.” (p. 100). A morte precoce <strong>de</strong> Salgueirinho, atropelado por um<br />

carro <strong>em</strong> marcha-ré, <strong>de</strong>sestabiliza a malandrag<strong>em</strong> <strong>de</strong> <strong>Cida<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong> <strong>Deus</strong>.<br />

Em contraponto ao malandro bom, o bicho-solto Cabeleira que<br />

“<strong>de</strong>s<strong>de</strong> criança vivia nas rodas <strong>de</strong> bandidos e gostava <strong>de</strong> ouvir histórias<br />

<strong>de</strong> assaltos, roubos e assassinatos” (p. 50) pratica crimes <strong>de</strong>ntro da<br />

favela, humilha trabalhadores, faz crianças <strong>de</strong> refém, mata s<strong>em</strong> pena e<br />

s<strong>em</strong> muitos motivos e se torna o bandido mais perigoso <strong>de</strong> <strong>Cida<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong><br />

<strong>Deus</strong>. Mas esta é uma <strong>de</strong>scrição simplificada, porque a narrativa vai aos<br />

poucos pingando a inquietação e o ódio do bandido com sua vida – “ficou<br />

sério, <strong>de</strong>ixando escapar um olhar irado [...] como se foss<strong>em</strong> todos<br />

culpados da <strong>de</strong>sgraça que era sua vida. (p. 27) –, com sua família – “o<br />

pai, aquele merda, vivia <strong>em</strong>briagado nas la<strong>de</strong>iras do morro do São Carlos;<br />

a mãe era puta da zona e o irmão, viado.” (p. 25) – e com o mundo:<br />

“Cabeleira resolveu que não andaria mais duro, trabalhar que n<strong>em</strong><br />

escravo, jamais; s<strong>em</strong> essa <strong>de</strong> ficar comendo <strong>de</strong> marmita, receber or<strong>de</strong>ns<br />

dos branquelos, ficar s<strong>em</strong>pre com o serviço pesado s<strong>em</strong> chance <strong>de</strong> subir<br />

na vida, acordar cedão para pegar no batente e ganhar merreca” (p. 51).<br />

A cena da morte <strong>de</strong> Cabeleira encerra a falta <strong>de</strong> sentido que inquieta sua<br />

vida e <strong>de</strong>lineia os pensamentos perturbados do bandido: “po<strong>de</strong> haver paz<br />

plena para qu<strong>em</strong> o viver fora s<strong>em</strong>pre r<strong>em</strong>exer-se no poço da miséria? [...]<br />

po<strong>de</strong> alguém enxergar o belo com olhos obtusos pela falta <strong>de</strong> tudo <strong>de</strong> que<br />

o ser humano carece?” (p. 202).<br />

Se pela negação ao trabalho se po<strong>de</strong> notar uma aproximação<br />

com o imaginário do malandro que associa trabalho a “coisa <strong>de</strong> otário”, as<br />

coincidências entre o bandido e o malandro terminam aí. A força<br />

agregadora <strong>de</strong> Salgueirinho – figura simbólica e polo positivo da<br />

malandrag<strong>em</strong> na vida dos moradores – e sua “ética malandra” <strong>de</strong> não<br />

cometer assaltos <strong>de</strong>ntro da favela funcionam como uma espécie <strong>de</strong> freio<br />

das atitu<strong>de</strong>s dos criminosos e contrastam com o agir inescrupuloso <strong>de</strong><br />

Cabeleira, que rompe com o “pacto malandro” na comunida<strong>de</strong>.

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