Literatura e Jornalismo: Fato e ficção em Abusado e Cidade de Deus
Literatura e Jornalismo: Fato e ficção em Abusado e Cidade de Deus
Literatura e Jornalismo: Fato e ficção em Abusado e Cidade de Deus
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
157<br />
[...] Decidimos sair do estádio, mas Juliano queria antes<br />
vingar-se pelo menos <strong>de</strong> um dos agressores, com uma<br />
surra e a entrega <strong>de</strong>le para a polícia.<br />
- A polícia t<strong>em</strong> que matá um filho da puta <strong>de</strong>sse! -<br />
protestou Juliano.<br />
- Que negócio é esse, Juliano? Deixa pra lá, já foi! - eu<br />
disse.<br />
- Caralho, olha aí o furo na tua perna! A polícia t<strong>em</strong> que<br />
vê isso, porra! Matá um cara <strong>de</strong>sse!<br />
- Ah é, é? Polícia t<strong>em</strong> que matar bandido, é? É isso que<br />
t<strong>em</strong> que ser feito, você t<strong>em</strong> certeza? É isso que ela <strong>de</strong>via<br />
ter feito quando te pren<strong>de</strong>u? - disse, tentando mostrar a<br />
incoerência <strong>de</strong> Juliano.<br />
- Foi covardia, cara, é isso que me revolta.<br />
- E qual assalto não é uma covardia? - perguntei.<br />
(BARCELLOS, 2004, pp. 477-8)<br />
O repórter-narrador se mostra mais cético <strong>em</strong> relação ao<br />
discurso do traficante, valendo-se às vezes <strong>de</strong> uma ironia mais crítica que<br />
a ironia cordial muitas vezes presente no discurso do narrador-jornalista.<br />
Os primeiros contatos com os moradores da favela e com os amigos <strong>de</strong><br />
Juliano também mostram o abismo <strong>de</strong> referências e <strong>de</strong> valores entre o<br />
repórter-narrador e os quadrilheiros <strong>de</strong> Juliano. Após a primeira entrevista<br />
com Luz, Barcellos pe<strong>de</strong> referências para se orientar no labirinto da favela<br />
e achar o barraco <strong>de</strong>la quando voltasse à Santa Marta:<br />
- Essa favela t<strong>em</strong> tudo <strong>de</strong> bom, po<strong>de</strong> perguntar - disse<br />
Luz.<br />
- T<strong>em</strong> correio? Aqui fica perto do correio, por ex<strong>em</strong>plo?<br />
- Correio, a favela não t<strong>em</strong>.<br />
- Cin<strong>em</strong>a?<br />
- Cin<strong>em</strong>a também não.<br />
- Biblioteca?<br />
- Biblioteca não, aí.<br />
- Praça, pracinha.<br />
- Não, não?<br />
- Escola, biblioteca...<br />
- Não t<strong>em</strong> nada disso, mas é só <strong>de</strong>scer que t<strong>em</strong> tudo lá<br />
no asfalto, aí.<br />
(BARCELLOS, 2004, pp. 463-4)<br />
A adoção da instância narrativa homodiegética também permite<br />
ao repórter-narrador recorrer à autoconsciência narrativa – o