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Literatura e Jornalismo: Fato e ficção em Abusado e Cidade de Deus

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161<br />

Este ponto <strong>de</strong> vista <strong>em</strong> constante movimento, que se <strong>de</strong>sloca<br />

conforme o personag<strong>em</strong> e a situação, mostra conhecimento e domínio da<br />

matéria narrada e da manufatura do ficcional. A criação ficcional muitas<br />

vezes encoberta pela realida<strong>de</strong> do mundo narrado, revela-se <strong>em</strong><br />

episódios que não caberiam num tratamento não literário e permite que o<br />

narrador <strong>de</strong>sloque seu ponto <strong>de</strong> vista à vonta<strong>de</strong>, pelos mais diversos<br />

atores da narrativa, inclusive o galo que serviria <strong>de</strong> almoço à quadrilha <strong>de</strong><br />

Pequeno e <strong>de</strong> Bené:<br />

– Cocoricó, coricó! - fez o galo <strong>de</strong> Almeidinha olhando<br />

cabreiro para Zé Pequeno, que havia mandado Otávio<br />

comprar <strong>de</strong>z quilos <strong>de</strong> batata e cinco galinhas para<br />

completar o almoço.<br />

[...]<br />

O galo, <strong>de</strong> tanto ouvir comentários a propósito <strong>de</strong> sua<br />

existência, antes mesmo do sol nascer, tratou <strong>de</strong> bicar,<br />

malandramente, o barbante que o prendia a um pedaço<br />

<strong>de</strong> bambu fincado no chão, até que ele ficasse<br />

suficient<strong>em</strong>ente fraco para rebentar ao mínimo puxão. Iria<br />

fugir, porém, só <strong>de</strong>pois que Almeidinha lhe jogasse os<br />

milhos <strong>de</strong> que tanto gostava, o que ainda não havia<br />

acontecido.<br />

[...] Mesmo com a certeza <strong>de</strong> que tudo era pertinente ao<br />

seu cozimento, achava que iria morrer e ao mesmo<br />

t<strong>em</strong>po não achava. Coisa <strong>de</strong> galo. Mas ao ver, <strong>de</strong><br />

relance, a faca sendo sustentada por aquele que durante<br />

toda a sua vida acreditara ser seu amigo, certificou-se <strong>de</strong><br />

que tudo ali concorria para o seu falecimento. (LINS,<br />

1997, pp. 332-3)<br />

O episódio t<strong>em</strong> seu lado pitoresco e alivia a tensão da<br />

narrativa, que vai ganhando contornos cada vez mais violentos, mas <strong>em</strong><br />

se tratando <strong>de</strong> Zé Pequeno, termina <strong>de</strong> forma previsível: “ ‘- Senta o <strong>de</strong>do<br />

no galo!’ E começou o tiroteio.” (p. 333). O galo escapa, mas como na<br />

construção literária as seleções e combinações não são aleatórias, n<strong>em</strong><br />

se prestam simplesmente a relatar o mundo – trata-se antes <strong>de</strong> recriá-lo<br />

com a liberda<strong>de</strong> que a literatura permite – é inevitável fazer uma<br />

associação com o <strong>de</strong>stino <strong>de</strong> Mané Galinha que, para infelicida<strong>de</strong> da<br />

sorte, cruza o caminho <strong>de</strong> Zé Pequeno, sessenta e seis páginas à frente.

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