No coracao do mar - Charlotte Rogan

NOITE
Naquela noite não dormi, ou, se dormi, foi mais como transitar de lá para cá
entre os estados de consciência e inconsciência, sendo a fronteira entre um e
outro um vasto território com atividade mental e agitação física mais intensas do
que nos períodos em que permaneci acordada. Acho que temíamos ser jogados
do barco durante o repouso, o que nos fazia ter sobressaltos e gritar sempre que
cruzávamos a fronteira do sono. O Sr. Preston, que recuperara seu lugar junto à
amurada, continuou tão perto que chegou a me acertar um soco quando acordou
assustado, gritando: “Eu posso explicar tudo!” Em outra ocasião, ele murmurou:
“A caixa não pode ser minha! Não passo de simples contador, afinal... O que
faria com joias?”
Sacudi-o de leve para acordá-lo, com medo de que viesse a se machucar
durante o sono.
— Sr. Preston! — falei. — Acalme-se!
Eu mesma, no entanto, sentia que não estava com as ideias muito claras. Em
um momento eu me via diante de nossa antiga casa ao lado de Miranda,
prometendo comprá-la de volta para ela, e no outro agarrava-me a Henry
enquanto ele afundava nas ondas. Em outro momento ainda, depois de horas
tentando manter-me firme, senti que escorregava, não do banco para as
madeiras molhadas do fundo do barco, mas do convés do Empress Alexandra
para dentro do mar apinhado de corpos e destroços. Uma criança erguia o rosto
para mim, os braços estendidos, mas quando tentei segurá-la, pequenas chamas
vermelhas inflamaram seus olhos e ela deu uma risada demoníaca, ainda que
infantil.
Nossa angústia naquela noite com certeza devia-se ao fato de que as tensões
até então subjacentes agora se tornavam explícitas. A Sra. Grant expressara o
que muita gente no barco já pensava: que o Sr. Hardie não tinha mais condições
de nos comandar; que tomara diversas decisões com base em algum propósito
pessoal não declarado; e que pessoas inocentes haviam morrido quando,
tivéssemos optado por outro curso de ação, poderiam ter sido salvas. Estivesse ou
não com razão a Sra. Grant em suas suspeitas — de que o Sr. Hardie agira por
motivos egoístas —, uma vez declaradas, tornava-se impossível ignorá-las.
Qualquer que fosse a verdade, a situação nos parecia agora mais perigosa do que
nunca, pois nos sentíamos ameaçados não apenas pelas forças da natureza, mas
também pelos seres humanos com quem dividíamos o barco.
A noite custava a passar. Nuvens encobriam a lua, criando uma espessa
camada de escuridão que nos impedia de distinguir quem se agitava ou quem
gemia. Suspeito de que a Sra. Grant tenha incumbido as pessoas sentadas mais
perto do Sr. Hardie de revezar-se para vigiá-lo, e pouco antes do amanhecer,