No coracao do mar - Charlotte Rogan

quisesse, do que talvez fizesse se nos comportássemos e parássemos de
questionar seus planos. Mas sua posterior incapacidade de nos conseguir alimento
não foi o único motivo para a raiva que crescia sub-repticiamente entre os
passageiros. Ele continuava a prever uma mudança no tempo. “Quando isso
acontecer”, dizia, “vocês mesmos verão que tem gente demais neste barco”. No
entanto, não queríamos dar-lhe ouvidos. Ficávamos irritados porque não
sabíamos o que fazer a respeito, ainda que suas palavras exprimissem a verdade.
Deveríamos simplesmente nos deixar morrer, como a Sra. Fleming? Mas foi só
aos poucos que esses sentimentos de raiva e dúvida se acumularam em nós. No
final do quinto dia ainda nos sentíamos gratos a Hardie pelo milagre dos peixes.
O diácono, que gostava de contar histórias bíblicas, aproveitou essa ocasião
para nos falar da multiplicação dos peixes e pães. Bastava ele começar uma
parábola ou um salmo para Mary Ann e Isabelle pararem o que estivessem
fazendo, e Any a Robeson deixava o pequeno Charlie sentar em seu colo com os
ouvidos descobertos sempre que o diácono abria a boca. Devo admitir que eu
também às vezes me deixava embalar pela familiaridade das histórias, embora
algumas fossem bem sombrias. As pessoas gostam de repetições. Gostam de
saber o fim de uma história, mesmo quando no fim todos morrem no dilúvio —
todos, menos Noé. O diácono contava uma história conhecida de todos nós,
depois estabelecia paralelos com a situação no barco, e certamente a arca de
Noé era bem apropriada. Mas ele era criativo, sabia adaptar à nossa condição
também as provações de Moisés no deserto e a divisão do mar Vermelho.
Ensinou-nos o Cântico do Mar — que celebrava a salvação dos escolhidos por
Deus e o afogamento do inimigo, engolido como uma pedra — para que
pudéssemos recitá-lo quando afinal fôssemos resgatados.
O Sr. Sinclair contou-nos que a história da arca de Noé era uma adaptação de
lendas pagãs antigas para a tradição cristã.
— Textos babilônicos sobre inundações incluem não apenas o dilúvio, mas
outros elementos familiares, como o corvo e a pomba, por exemplo. Isso não
pode ser coincidência — afirmou ele.
O diácono, no entanto, apressou-se a rejeitar a ideia como heresia. Mary Ann
parecia preocupada, não tanto pela possível heresia quanto por não saber de que
lado ficar no debate. Eu apoiava o Sr. Sinclair, falei para ela. Por sorte o Sr.
Sinclair era não apenas erudito mas também conciliador: conseguiu abrandar os
sentimentos de todos com citações de Boccaccio, que supostamente tratou da
tendência humana a acreditar no mal e não no bem, e da impossibilidade de
haver poesia sem mitos.
Com o passar dos dias, comecei a me perguntar se Hardie de fato apanhara
algum peixe ou se aquilo fora uma alucinação coletiva. O presente parecia fixo e
imóvel, mas o passado, comprimido e distante, tão sujeito a interpretações quanto
uma passagem de um denso texto teológico. A ideia de termos nascido no barco