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perguntou-se em voz alta se a água teria acaba<strong>do</strong>, e Hardie respondeu que não.<br />
Ele também nos garantiu que não, o barco não estava fura<strong>do</strong>, e que toda a água<br />
que parecia brotar embaixo <strong>do</strong>s bancos entrava pela borda. Eu queria acreditar<br />
nele, mas não conseguia. Mais uma vez suspeitei que fizesse essas afirmações<br />
para evitar o pânico, mas, ainda que sua intenção fosse louvável, eu não queria<br />
ouvir mentiras. A única vez que Henry e eu discordamos foi quan<strong>do</strong> ele me<br />
induziu a acreditar que sua família sabia de minha existência.<br />
— Tenho certeza de que você saberá lidar com a sua família <strong>do</strong> melhor mo<strong>do</strong><br />
possível — eu lhe disse logo que decidimos nos casar, mas, depois de estar com o<br />
anel de noiva<strong>do</strong> no de<strong>do</strong>, quis conhecer a situação exata em que me encontrava,<br />
e acabamos brigan<strong>do</strong>.<br />
<strong>No</strong> barco salva-vidas, eu tinha a mesma vontade de compreender em que pé<br />
estávamos e o que seria necessário fazermos a respeito, embora seja evidente<br />
que tanto o Sr. Hardie quanto eu não tínhamos as respostas para tais<br />
questionamentos. Ele seguia o que lhe parecia o melhor caminho a to<strong>mar</strong>, apenas<br />
isso, e seu julgamento acerca de que caminho escolher ao <strong>mar</strong> com certeza era<br />
melhor que o meu. Mesmo assim, eu e outros passageiros o culpávamos, como<br />
se ele soubesse a verdade e a escondesse de nós, fosse por capricho ou como<br />
uma forma de punição por nossos peca<strong>do</strong>s.<br />
Por incrível que pareça, eu gostava de baldear água. Sentia-me útil, ou talvez<br />
fosse um desejo feminino de colocar ordem a meu re<strong>do</strong>r. Era uma ocupação,<br />
algo melhor a se fazer <strong>do</strong> que apenas contemplar o aterrorizante vazio <strong>do</strong> oceano<br />
escuro. Enquanto retirava a água, eu inspecionava o fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> barco à procura <strong>do</strong><br />
buraco ou rachadura que eu sabia existir, embora nunca o tenha encontra<strong>do</strong>. Às<br />
vezes imaginava estar limpan<strong>do</strong> a casa que eu e Henry teríamos um dia, e que se<br />
misturava na minha mente com meu Palácio de Inverno imaginário. Eu<br />
fantasiava uma sala de estar ensolarada, embelezada pelo canapé ao estilo Luis<br />
XV que pertencera a minha avó e que teria si<strong>do</strong> meu presente de casamento se<br />
não tivéssemos si<strong>do</strong> obrigadas a vendê-lo quan<strong>do</strong> nos mudamos. Como Henry<br />
gostava de azul, escolhi para as paredes <strong>do</strong> cômo<strong>do</strong> um tom forte que lhe<br />
agradasse mas que ao mesmo tempo não fosse nada muito masculino nem frio<br />
demais. Henry me infor<strong>mar</strong>a que talvez não ganhássemos nada de sua mãe, pois<br />
ela não aprovava nossa união. <strong>No</strong> entanto eu estava confiante que com o passar<br />
<strong>do</strong> tempo venceria sua resistência.<br />
Any a Robeson se recusava a baldear água. Era a única dispensada de todas as<br />
tarefas. Recusava-se a ficar longe <strong>do</strong> pequeno Charlie por um instante sequer; os<br />
<strong>do</strong>is permaneciam gruda<strong>do</strong>s um no outro bem no meio <strong>do</strong> banco central, imóveis<br />
como o rotor no coração de um giroscópio. Ela tinha pânico de molhar a saia,<br />
pois toda vez que alguma peça de roupa se impregnava de água salgada, levava<br />
dias para secar. Fazia muito frio, de fato, mas como avaliar os efeitos <strong>do</strong> me<strong>do</strong> e<br />
<strong>do</strong> vento, <strong>do</strong> teci<strong>do</strong> molha<strong>do</strong> gruda<strong>do</strong> na pele salgada, da apavorante certeza de