No coracao do mar - Charlotte Rogan

Uma noite, enquanto eu contemplava a água escura sob a cobertura infinita de
estrelas e admirava as minúsculas luminescências de vida marinha, minúsculas
demais para que fosse possível descrevê-las com precisão a não ser pelo efeito
conjunto que produziam, meu medo desapareceu. Eu sempre imaginara Deus
pairando em algum lugar acima de nós, sorridente ou carrancudo dependendo de
seu humor e de como se sentisse em relação a nós, satisfeito ou não, habitando o
sol talvez, inflando as bochechas e soprando tempestades para nos tirar do torpor
ou nos impedir de tomar o caminho errado. Agora, no entanto, eu sabia que Deus
estava no oceano, que se movia furtivamente, de mãos dadas com Hardie,
erguendo-se nas ondas imensas e salpicando pedaços aleatórios de Si mesmo em
nosso barco.
Pensei em não falar sobre isso no julgamento, pois havia presenciado o
suficiente para saber que revelações pessoais são consideradas ora heresia ora
loucura, mas acabei comentando a questão com o Sr. Reichmann durante uma
de nossas conversas. Ele achou que recorrer à fé em Deus era uma boa
estratégia e que se eu quisesse deveria ir em frente e me utilizar disso, contanto
que deixasse de fora alguns detalhes, uma vez que de fé os jurados entendiam.
— Até parece — comecei, mas preferi segurar a língua.
Sem o diácono para me indicar o caminho espiritual — ainda que de maneira
um tanto sombria para meu gosto —, fui obrigada a tentar encontrá-lo sozinha.
Procurei lembrar-me de passagens da Bíblia ou de sermões que me tivessem
impressionado, mas não me ocorreu praticamente nenhum, já que eu não era
uma ouvinte atenta e me considerava mais uma pessoa visual ou, na verdade,
alguém que tende à ação mais do que apenas viver em contemplação
infindavelmente. Lembrei-me da luz que fluía através dos vitrais, do brilho dos
cabelos recém-lavados das meninas do coro, das crianças irrequietas nos bancos
até serem finalmente liberadas para a escola dominical, do silêncio súbito que se
instalava após sua partida e da vontade de ter ido com elas, mesmo depois de
mais velha. Lembrei-me da roupa violeta e branca que o ministro vestia e dos
chapéus estranhos usados pelas senhoras da paróquia, e de tudo isso eu me
lembrava mais do que aquilo que era dito.
Depois de três semanas no barco salva-vidas e mais duas em um tribunal onde
minha vida é julgada, presto mais atenção ao que escuto. Ouvi, por exemplo,
quando a Sra. Grant pediu que Hannah fosse até o tonel e procurasse lá dentro
uma caixa de madeira, embora eu fingisse não ter ouvido. Escutei também
quando o juiz recusou-se a aceitar o depoimento de Hannah sobre o que Mary
Ann lhe contara a respeito de algumas joias que ela acreditava estarem, nas
mãos do Sr. Hardie, alegando não passar de uma intriga sem prova concreta.
Ouvi o Dr. Cole me acusar de fraca e influenciável, assim como entendi bem o
Sr. Reichmann afirmar que nem todas as esposas eram iguais. E quando o júri
me inocentou, o veredito ecoou com tanta clareza em meus ouvidos quanto a