No coracao do mar - Charlotte Rogan

conexão, mas que o Sr. Hardie estava para ser demitido. O incidente acabou com
o Sr. Hardie aparentemente aceitando alguma condição imposta pelo
comandante, que gritou, enquanto se afastava: “E se não mantiver a palavra, eu
mesmo o atiro do barco!” As duas mulheres passaram a tarde toda especulando
sobre o incidente, como se aquilo carregasse um grande significado, como se
conseguisse explicar alguma coisa sobre Hardie que não podia ser inteiramente
fundamentada pelos fatos que havíamos presenciado no barco. Dias depois,
enquanto eu descansava sobre os cobertores ao lado da Sra. Cook, ela me relatou
a mesma cena, à qual já havia acrescentado alguns detalhes. Isso foi depois de o
Sr. Hardie ter nos contado mais coisas sobre o oficial chamado Blake, e ela então
concluiu que a pessoa sobre quem Hardie e o comandante discutiam era o Sr.
Blake. Ela aproveitou para acrescentar, com seu habitual critério retrospectivo:
— Eu não tinha dúvida de que nossos caminhos voltariam a se cruzar.
O coronel Marsh comentou com várias pessoas, aos sussurros, que certa vez
vira o Sr. Hardie abrir mão de uma garrafa de uísque para um dos oficiais sem
ao menos rosnar. Teria sido Blake? Blake teria algum poder sobre Hardie? Os dois
estariam mancomunados em algum negócio escuso? Ou seriam arqui-inimigos?
As histórias circulavam incansavelmente pelo barco, incitando cada um a
contribuir com as próprias reminiscências, sendo que todas, em conjunto,
pareciam confirmar que o Sr. Hardie tinha um passado sombrio e misterioso. As
histórias sobre ele eram as mais apreciadas e debatidas, mas era preciso a
máxima cautela ao abordá-las para que ele não soubesse que era o assunto. Cada
informação ou invenção cochichada somava-se a fragmentos de outras histórias
e era discutida e interpretada obsessivamente, como se a narrativa resultante
pudesse afinal explicar por que nos encontrávamos à deriva naquele vasto e
solitário oceano.
Logo no primeiro dia o Sr. Preston, sempre muito preciso quando se tratava de
números, contou ao Sr. Sinclair que fizera amizade com o comissário de bordo e
que assim descobrira que o proprietário do navio estava afogado em dívidas.
Partindo disso, o Sr. Preston levantou a hipótese de o navio encontrar-se em mau
estado de conservação por causa da situação financeira do proprietário e de a
manutenção de algum item primordial ter sido negligenciada devido à partida
precipitada. Também essa história acabou modificada: passaram a dizer que o
proprietário do Empress Alexandra havia encomendado a destruição do navio
para receber o dinheiro do seguro. Depois que o Sr. Hardie contou que o navio
fora vendido para alguém capaz de conseguir lucro maior, o Sr. Preston voltou a
mencionar as observações do comissário de bordo. De todas as pessoas no barco,
ele era o menos sutil. Nunca lhe ocorreu que pudesse haver nuances e níveis de
discurso, e jamais o vi inclinar a cabeça para falar com discrição nem baixar a
voz para fazer algum comentário. Se tivesse algo a dizer, falava sem rodeios, e
naquela noite disse ao coronel alto e bom som: