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Reichmann e eu rimos muito desse olhar, e assim ele recuperou suas feições<br />
habituais. Sem dúvida, to<strong>do</strong>s franzem o cenho quan<strong>do</strong> alguém demonstra<br />
qualquer tipo de bom humor na prisão, mas não pude deixar de pensar que era<br />
ridículo tratar adultos como crianças, puni-los e encarcerá-los, e tentar construir<br />
uma narrativa que faça seus atos se encaixarem com precisão na coluna das<br />
virtudes ou na <strong>do</strong>s crimes.<br />
É evidente que não há um dia em que eu não pense no barco salva-vidas e não<br />
me pergunte se seria melhor estar lá ou aqui, mas não que isso seja uma<br />
obsessão recorrente ou mórbida, como o Dr. Cole gosta de pensar. Transponho a<br />
abóbada azulada da câ<strong>mar</strong>a da memória como se entrasse em uma igreja: com<br />
reverência e temor na alma. A igreja também é banhada de luz — não a luz<br />
pálida filtrada através de imagens sombrias de Cristo na cruz, mas uma claridade<br />
<strong>mar</strong>inha, perturba<strong>do</strong>ra e verde, e fria como o coração de Satanás.<br />
É possível escrever sobre a luz sem conhecê-la? Henry teria dito que não, e o<br />
Sr. Sinclair teria me feito uma preleção a respeito <strong>do</strong> tempo, por isso pedi ao Sr.<br />
Glover, assistente <strong>do</strong> Sr. Reichmann, que me trouxesse livros sobre o assunto.<br />
Seria útil saber que a luz é apenas parte de um espectro eletromagnético<br />
contínuo, como dizem os cientistas, ou que ela apresenta tanto características de<br />
projéteis quanto de ondas? De ondas, eu enten<strong>do</strong>. Elas nos <strong>do</strong>minavam com sua<br />
altura. Ora montávamos em sua crista e de lá podíamos ver, por um breve<br />
instante, a vasta solidão <strong>do</strong> oceano, ora mergulhávamos em suas depressões,<br />
onde imediatamente imensas muralhas de água bloqueavam o limite de nossa<br />
visão.<br />
Quan<strong>do</strong> mencionei luz em uma carta que escrevi para Greta Witkoppen, a<br />
jovem alemã que logo se afeiçoara à Sra. Grant e que prolongara sua estada nos<br />
Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s para assistir a nosso julgamento, ela respondeu:<br />
“Não me escreva sobre esse tipo de coisa! Na verdade, os advoga<strong>do</strong>s dizem<br />
que não devo trocar nenhum tipo de correspondência com vocês, pois poderia<br />
parecer que estamos conspiran<strong>do</strong>. Mesmo assim, diga à Sra. Grant que não se<br />
preocupe. Sabemos exatamente o que fazer! Quanto à luz, esforço-me para<br />
esquecê-la, mas duvi<strong>do</strong> que algum dia consiga. Fantasmagórica, é o que era.<br />
To<strong>do</strong>s imaginavam que fosse um sinal de Deus, mas não posso deixar de pensar<br />
que se tratava de alguma coisa tramada por Hannah. Alguma vez lhe ocorreu<br />
que ela podia ser uma bruxa?”<br />
Ela se referia, claro, às estranhas faixas de luz que apareceram mais ou<br />
menos no décimo sexto dia e que se moviam na superfície da água na calada da<br />
noite. Também jamais as esquecerei, <strong>do</strong> mesmo mo<strong>do</strong> como jamais esquecerei<br />
o instante em que a cabeça de Hardie ressurgiu da água, quan<strong>do</strong> pensávamos que<br />
ele afundara para sempre. Ficamos boquiabertos, quase sem acreditar no que<br />
nossos olhos viam; mas não havia qualquer dúvida. To<strong>do</strong>s nós víamos as faixas de<br />
luz, mas tínhamos discussões implacáveis sobre seu significa<strong>do</strong>.