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No coracao do mar - Charlotte Rogan

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enquanto o escutava. Como percebi mais tarde, esse carisma desaparecia quan<strong>do</strong><br />

ele abordava assuntos que estavam fora de sua alçada, mas quan<strong>do</strong> se tratava de<br />

oração ele sentia segurança, sua voz se elevava acima <strong>do</strong> ruí<strong>do</strong> da água e sua<br />

palavra nos unia. Era evidente que ele descobrira sua vocação, e eu me<br />

perguntei, não pela primeira vez, se parte da tragédia da vida não aparecia<br />

quan<strong>do</strong> as pessoas se colocavam em situações para as quais suas naturezas não<br />

estavam aptas. Mais tarde eu viria a repensar minha opinião sobre o diácono, sua<br />

voz de tenor me parecen<strong>do</strong> uma prova de sua fraqueza geral, mas por enquanto<br />

eu me contentava em observar como a fé lhe revigorava as feições e em ouvir<br />

como sua voz trazia vida às tão antigas palavras das orações.<br />

Apesar de nosso propósito comum, não tardaram a aparecer desimportantes<br />

manifestações de ciúmes. Os passageiros senta<strong>do</strong>s nos bancos compri<strong>do</strong>s ao<br />

longo da amurada estavam mais sujeitos a receber os respingos <strong>do</strong>s remos <strong>do</strong><br />

que os instala<strong>do</strong>s no meio <strong>do</strong> barco, e quan<strong>do</strong> o Sr. Hardie determinou a ordem<br />

em que seria feito o revezamento no <strong>do</strong>rmitório, a Sra. McCain, uma senhora de<br />

maneiras rudes, insistiu em que as mulheres mais velhas tivessem o direito de<br />

ocupá-lo primeiro. A Sra. McCain acabou conseguin<strong>do</strong> o que queria, mas<br />

bastaram alguns minutos sobre os cobertores para ela recla<strong>mar</strong> que o lugar era<br />

abominável, que fazia muito calor embaixo da lona e que ela preferia o horário<br />

noturno. Por causa da superlotação, a locomoção no barco era difícil, de forma<br />

que quan<strong>do</strong> a Sra. McCain perdeu o equilíbrio ao voltar para seu lugar, uma onda<br />

ultrapassou a amurada, fazen<strong>do</strong> o Sr. Hardie gritar:<br />

— Tratem de ficar nos seus lugares até que eu dê ordens em contrário!<br />

Foi o Sr. Hoffmann quem primeiro expressou o que to<strong>do</strong>s nós pensávamos: o<br />

barco não fora concebi<strong>do</strong> para carregar tanta gente. Poucos minutos depois, o<br />

coronel Marsh apontou para uma placa de latão pregada perto <strong>do</strong> segun<strong>do</strong> tolete<br />

a estibor<strong>do</strong> na qual estava grava<strong>do</strong> “CAPACIDADE: 40 PESSOAS”. Mesmo<br />

com trinta e nove, era evidente para to<strong>do</strong>s que, com o excesso de peso, o barco<br />

navegava afunda<strong>do</strong> demais na água e que só o tempo bom impedira que isso<br />

representasse um grande perigo até o momento. A placa nos deixou perplexos,<br />

em especial o coronel Marsh, homem que prezava a ordem e esperava não<br />

apenas certa uniformidade universal como também um acor<strong>do</strong> de cavalheiros<br />

sobre o senti<strong>do</strong> das palavras entre usuários da língua inglesa.<br />

— A palavra falada é uma coisa — observou —, mas alguém teve o trabalho<br />

de mandar gravar este número em uma placa.<br />

Ele esfregava o de<strong>do</strong> na inscrição incessantemente, depois recontava as trinta<br />

e nove cabeças no barco enquanto sacudia pesadamente a sua, confuso. Em<br />

determina<strong>do</strong> momento ele tentou abordar a questão com o Sr. Hardie, que<br />

apenas respondeu:<br />

— E o que propõe que seja feito? Quer escrever aos fabricantes deste maldito<br />

barco e dar entrada em uma reclamação formal?

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