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Objetos cortantes - Gillian Flynn

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Toque de sino, coleta de pratos, Gayla contornando a mesa como um lobo decrépito.<br />

Tigelas de sorbet laranja-sangue de sobremesa. Minha mãe desaparecendo discretamente<br />

na despensa e reaparecendo com dois frascos de cristal esguios e olhos rosados. Meu<br />

estômago revirou.<br />

— Camille e eu tomaremos drinques no meu quarto — disse aos outros, ajeitando o cabelo<br />

no espelho acima do aparador.<br />

Eu me dei conta de que estava vestida para isso, já de camisola. Assim como fazia quando,<br />

ainda criança, era convocada, eu a segui escada acima.<br />

E então estava no quarto dela, onde sempre quisera estar. Aquela cama enorme,<br />

travesseiros brotando dela como mariscos. O espelho de corpo inteiro embutido na parede. E<br />

o famoso piso de marfim que fazia tudo brilhar como se estivéssemos em uma paisagem<br />

nevada iluminada pela lua. Ela jogou os travesseiros no chão, puxou as cobertas, fez um gesto<br />

para que me sentasse na cama e depois se sentou ao meu lado. Durante todos aqueles meses<br />

após a morte de Marian quando ela permaneceu no quarto e me rejeitou, eu não teria ousado<br />

me imaginar aninhada na cama com minha mãe. E ali estava eu, mais de quinze anos tarde<br />

demais.<br />

Ela correu os dedos por meus cabelos e me deu a bebida. Uma inspirada: cheirava a maçãs<br />

podres. Eu a segurei rigidamente, mas não bebi.<br />

— Quando eu era pequena, minha mãe me levou para North Woods e me deixou lá — disse<br />

Adora. — Ela não parecia com raiva ou chateada. Parecia indiferente. Quase entediada. Não<br />

explicou o motivo. Na verdade não me disse uma palavra. Apenas me mandou entrar no carro.<br />

Eu estava descalça. Quando chegamos lá, ela me pegou pela mão e muito eficientemente me<br />

puxou pela trilha, depois para fora da trilha, então soltou minha mão e disse para não segui-la.<br />

Eu tinha oito anos, era só uma coisinha pequena. Meus pés estavam cortados em tiras quando<br />

cheguei em casa, e ela apenas ergueu os olhos do jornal vespertino, me olhou e subiu para seu<br />

quarto. Este quarto.<br />

— Por que está me contando isso?<br />

— Quando uma criança sabe, tão jovem, que sua mãe não se importa com ela, coisas ruins<br />

acontecem.<br />

— Acredite, conheço a sensação — falei.<br />

As mãos dela ainda corriam por meus cabelos, um dedo brincando com meu círculo de<br />

couro cabeludo nu.<br />

— Eu queria amar você, Camille. Mas você era muito difícil. Marian era muito fácil.<br />

— Chega, mamãe — interrompi.<br />

— Não. Não chega. Deixe-me cuidar de você, Camille. Apenas uma vez, precise de mim.<br />

Deixe que termine. Deixe que tudo termine.<br />

— Então vamos fazer isso — falei.<br />

Tomei a bebida em um gole, arranquei as mãos dela da minha cabeça e forcei minha voz a<br />

ser firme.

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