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Objetos cortantes - Gillian Flynn

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não era dito — ficou toda interessada nelas. Eu nunca pude ter nada só para mim. Elas não<br />

eram mais um segredo meu. Estavam sempre aparecendo em casa. Começaram a me fazer<br />

perguntas sobre ficar doente. Elas iriam estragar tudo. Elas nem sequer se davam conta —<br />

continuou Amma, esfregando com firmeza os cabelos cortados. — E por que Ann tinha que<br />

morder… ela? Eu não conseguia deixar de pensar nisso. Por que Ann podia morder e eu não<br />

podia?<br />

Ela se recusou a dizer mais, respondeu apenas com suspiros e tossidas. Quanto aos dentes,<br />

ela os pegou só porque precisava deles. A casa de bonecas tinha de ser perfeita, assim como<br />

tudo o mais que Amma amava.<br />

Acho que há mais. Ann e Natalie morreram porque Adora prestou atenção nelas. Amma só<br />

podia ver isso como uma injustiça. Amma, que por tanto tempo permitira que minha mãe a<br />

adoecesse. Algumas vezes se você deixa as pessoas fazerem coisas a você, na verdade você<br />

está fazendo a elas. Amma controlava Adora deixando Adora adoecê-la. Em troca exigia<br />

amor e lealdade incontestes. Outras garotinhas não eram aceitas. Pelas mesmas razões ela<br />

assassinou Lily Burke. Porque, Amma suspeitava, eu gostava mais dela.<br />

Você pode dar quatro mil outros palpites, claro, sobre por que Amma fez isso. No final<br />

resta um fato: Amma gostava de machucar. Eu gosto de violência, ela gritara para mim. Eu<br />

culpo minha mãe. Uma criança criada com veneno considera dor um consolo.<br />

* * *<br />

No dia da prisão de Amma, o dia em que tudo enfim desmoronou totalmente, Curry e Eileen<br />

ancoraram no meu sofá, como saleiro e pimenteiro preocupados. Escondi uma faca na manga<br />

e, no banheiro, tirei a camisa e cortei fundo no círculo perfeito em minhas costas. Raspei para<br />

a frente e para trás até a pele estar rasgada em garatujas. Curry invadiu no instante antes de eu<br />

cortar o rosto.<br />

Curry e Eileen arrumaram minhas coisas e me levaram para a casa deles, onde tenho uma<br />

cama e algum espaço no que antes foi um salão de jogos no porão. Todos os objetos <strong>cortantes</strong><br />

foram trancados, mas não me esforcei muito para pegá-los.<br />

Estou aprendendo a ser cuidada. Aprendendo a ter pais. Retornei à minha infância, à cena<br />

do crime. Eileen e Curry me acordam de manhã e me colocam na cama com beijos (ou, no<br />

caso de Curry, um aperto carinhoso no queixo). Não bebo nada mais forte que o refrigerante<br />

de uva de que Curry gosta. Eileen prepara meu banho e, às vezes, escova meu cabelo. Isso não<br />

me dá arrepios, e achamos que é um bom sinal.<br />

É quase doze de maio, exatamente um ano após meu retorno a Wind Gap. Este ano a data<br />

coincidiu com o Dia das Mães. Esperto. Às vezes penso naquela noite cuidando de Amma, em<br />

como fui boa em aplacá-la e acalmá-la. Às vezes sonho que dou banho em Amma e seco sua<br />

testa. Acordo com o estômago retorcendo e o lábio superior suado. Eu cuidei bem de Amma

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