Onofre Lopes Júnior - Fundação Jose Augusto
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Por acaso<br />
Hudson Paulo Costa (Professor e escritor)<br />
Ilustração: Guaraci Gabriel<br />
sensação das coisas próximas, longe, ou as que não se<br />
A encontram em nenhuma referência de tempo e lugar,<br />
esta sensação do que está para acontecer, nem sempre é<br />
possível captá-la numa coerência traduzível em palavras.<br />
Ela fi ca perdurando longamente...<br />
Imaginei o dia como se não fosse dia, mas uma noite<br />
sempre antepondo-se aos raios do sol prestes a cobrir o<br />
movimento dos cílios de um camelo procurando sua rota<br />
no deserto.<br />
Na clínica, ao entardecer, atendi a minha última paciente<br />
naquele dia. Dizia-me de suas obsessões, dos problemas<br />
que tomaram conta de sua vida em vez de sua vida ter<br />
tomado conta dos problemas.<br />
Estudava como resolver mais um caso de neurose. Detiveme<br />
numa teia de aranha esquecida no alto da parede da<br />
sala onde estava um quadro com a imagem de Dante. Ele<br />
olhava-me como a me esperar no inferno. A aranha e o<br />
rosto de Dante ocuparam-me por alguns instantes em<br />
dissonantes impressões que alertavam-me para alguma<br />
coisa prestes a acontecer. Poderia ser algum criminoso<br />
procurando pela próxima vítima, uma mão buscando<br />
sôfrega outra mão para poder traí-la...<br />
Naquela tarde decidi sair do consultório mais cedo e<br />
procurar alguém com quem conversar. Qualquer pessoa<br />
que tivesse apenas a capacidade de ouvir. Vi uma senhora<br />
caminhando com uma criança nos braços e dela aproximei-<br />
me para perguntar por um endereço imaginário. Quando<br />
ela disse-me não saber, esbocei o início de uma conversa.<br />
A criança em seus braços olhou-me detidamente. Pedi<br />
permissão para segurá-la por um instante. Perguntei a sua<br />
idade. A mãe continuou em silêncio, mas a criança com<br />
uma voz grave e profunda respondeu escandindo cada<br />
sílaba: - “A idade de sua ignorância. A idade da solidão de<br />
todos os homens. Todas as idades”.<br />
Você pode imaginar como eu fi quei? Parecia ser uma<br />
brincadeira de ventríloquo, uma magia, um truque.<br />
Devolvi rapidamente a criança à mãe. A criança<br />
continuou a falar palavras sábias, milenares, tocando-me<br />
profundamente. Havia uma força estranha naquela voz,<br />
um mistério fl uindo, o espírito de um mago.<br />
As pessoas passavam bem próximas a nós, mas não<br />
ouviam. Por que apenas eu a ouvia? Seria um privilégio<br />
ou eu estaria fi cando louco? Perguntei como se explicaria<br />
aquela situação. Aquilo era um fenômeno e ela poderia<br />
ganhar milhões levando a criança para as emissoras<br />
de televisão de todo o mundo. A mãe continuou em<br />
silêncio.<br />
A criança olhando-me com um ar um tanto agressivo<br />
disse-me: - “Resolvi falar apenas a você porque quero<br />
lhe demonstrar o quanto você nada sabe. Você pensa<br />
ter devolvido a sanidade mental a muitos desajustados.<br />
Você os fez mais loucos ainda. Lembra-se do caso daquela<br />
menina que deixou a faculdade de Direito para tocar<br />
fl auta? A família entregou-a como um caso de anomalia.<br />
E o que você fez? Tratou-a com a sua técnica para torná-la<br />
mais uma a azeitar a máquina enferrujada dessa sociedade<br />
decadente. Todos pensam saber, mas ninguém sabe.<br />
Ninguém vai acreditar que você ouviu de uma criança<br />
como eu o que estou lhe dizendo agora. O saber está entre<br />
vocês na dimensão do aqui e agora. Mas o que não está<br />
nesta dimensão, onde está? Responda-me. Não preciso<br />
dizer que todo saber é limitado. Vocês construíram uma<br />
sociedade em que tudo que não se traduz em dinheiro<br />
não tem valor. Vocês vão pagar muito caro por isto. O<br />
tempo não tem pressa. Você me viu e não me viu”. A<br />
criança dirigiu um olhar para a mãe e ela saiu caminhando<br />
naturalmente pela calçada.<br />
Confi denciei rapidamente o fato a minha família, amigos<br />
e colegas da clínica. Dei entrevistas no rádio e na televisão.<br />
Fizeram o retrato falado da mãe e do fi lho e publicaram a<br />
matéria em todos os jornais da cidade.<br />
Aos poucos fui perdendo a minha clientela. Aconselharamme<br />
a um tratamento, um repouso, uma viagem, qualquer<br />
coisa que me fi zesse esquecer o episódio.<br />
Hoje vendo frutas e verduras nas feiras livres da cidade.<br />
Julho 2004<br />
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