O tempo como um espaço para a solidão 38 Julho 2004 João Antônio Bezerra Neto (Bolsista de iniciação científi ca PIBIC/CNPq) A borrasca abençoou minhas manhãs marítimas. Arthur Rimbaud convulso e dramático lirismo do primeiro livro de poemas de Walfl an de Queiroz, O publicado em 1960, - “O tempo da solidão” -, desenvolve-se a partir de um conjunto de experiências vivenciadas pelo próprio autor durante sua temporada no mar tenebroso como marinheiro de um velho navio que fazia a linha América do Sul/Antilhas. A sua aventura marítima só poderia resultar na feitura de belos poemas impregnados de marés amargas e sonoras, de melodias misteriosamente nostálgicas, de marujos muito antigos e embriagados, de mulheres exóticas, de portos distantes, de velas brancas e longas tardes azuis. O poeta, jovem e erudito, estréia aos 30 anos de idade, impressionando os intelectuais do círculo literário da cidade de Natal com suas afi rmações de incontestáveis qualidades poéticas.
A sua poesia revela uma profunda tortura existencial a serviço de uma sensibilidade extraordinária, lembrando os grandes românticos e os grandes agônicos da Literatura Universal. Walfl an tinha adquirido desde cedo o gosto pela leitura e pelo isolamento, por isso fomentava a sua própria solidão para dela extrair os poemas plenos de angústia e de metafísica. Solitário e amargurado, o poeta nascido em São Miguel, longínqua cidade do Alto Oeste Potiguar, viveu quase sempre sob os tormentos de uma imaginação fértil e febril, terminando os seus dias numa clínica para doentes mentais. Em “O tempo da solidão”, uma amostra de sua potencialidade lírica é o poema “Bateau ivre”, no qual podemos sentir uma perfeita harmonia entre a forma e o conteúdo, a intensidade plástica e a fuga do real. Vejamos: Tenho que ancorar numa ilha do arquipélago das Marquesas. Pode ser Typee ou outra ilha qualquer, não me interessa. Estou cansado de istmos e golfos amargos. Em Typee terei tempo e oportunidade de esconder As pérolas negras que trafi quei no porto de Timbuktu. Talvez faça um poema para a fi lha do cacique. E durma com ela ao som dos riachos e das fontes. Passarei uns quatro meses distante do mundo selvagem E me distrairei com as danças e rituais mágicos dos nativos. Ela será para mim, como a Tehura de Paul Gauguin. As impressões extraídas de uma paisagem tropical ainda intacta e exuberante encontrada, por exemplo, nas Ilhas Marquesas, estas maravilhas perdidas no Pacífi co, apartadas mais ou menos das rotas de navegação e cujos habitantes, segundo relatos, foram antropófagos, têm efeitos profundos na visão do poeta. De outra parte, eis como a realidade muitas vezes se funde com o universo sensível do artista, ao seu olhar penetrante, atento para extrair das fascinantes paisagens metáforas necessárias para engendrar seus poemas. Assim, o domínio do primitivo se apresenta para o poeta de acordo com a sua indumentária exótica e mágica, sendo o oposto daquele no qual a dinâmica da tecnologia assume um valor maior para a civilização. Para o poeta, o que interessa são as valiosas pérolas negras, por sua cor inusitada, o cinzaescuro, e a sua musa com feições indígenas comparada a Tehura de Paul Gauguin, uma nativa de origem polinésia com quem o pintor francês viveu durante um certo tempo numa rústica cabana no Tahiti. Em companhia de sua doce dama, o seu cansaço existencial será atenuado pela dança sensual e as cerimônias misteriosas e iniciáticas dos feiticeiros da ilha. Um aspecto que também nos chama bastante atenção é a grande quantidade de informações da tradição literária presentes no livro. Desse modo, poetas como um Verlaine, Rimbaud, Hölderlin, Keats, Poe e Hart Crane são ressuscitados na sua poesia através de um diálogo harmonioso, sustentado pela dramaticidade do estilo bem como pela tensa melancolia e um sentimento platônico. A dialética da solidão em Walfl an de Queiroz é preenchida com fragmentos da dor de viver, com pedaços de um tempo interior, desde sempre, veiculados a uma realidade criada por ele mesmo. De outra parte, Walfl an consegue esboçar um caminho solitário e místico semelhante aquele traçado por Rilke, como é possível verifi car nos poemas “Prece”, “Maria” e “Angústia”. Nesse sentido, o seu estado de espírito ressoa em verso íntimo: “Senhor! Quero esta estrela que me olha com olhos fi tos e constantes”. O poeta de “O tempo da solidão”, pela maturidade da sua obra, detentor de um discurso artístico refi nado, expressando-se por meio de versos livres e brancos, consubstanciados numa densa pulsação emocional, elevou a lírica norte-rio-grandense a um registro poético que afi na seu timbre com o que de melhor foi produzido no sistema literário brasileiro. A poesia de Walfl an de Queiroz discorre sobre a solidão com sensibilidade, ternura e, sobretudo, beleza. Aliás, vê o sentido da beleza permanente que há nas coisas, assim como Keats escreveu no passado: “A thing of beauty is a joy for ever”. O seu compromisso com o belo e a harmonia são altamente grandes, à maneira de um Robert Frost ou de um Emily Dickinson. Ora, não nos restam dúvidas de que seus poemas detêm metáforas originais, verdadeiras imagens iluminadas, empreendidas em uma dicção espontânea e singular, criando um universo poético que se mescla à evocação de leituras feitas pelo poeta ao longo de sua vida. Enfi m, a sua solidão está cheia de sentido místico, tomando forma numa poesia com forte conteúdo espiritualizado. Julho 2004 39