Onofre Lopes Júnior - Fundação Jose Augusto
Onofre Lopes Júnior - Fundação Jose Augusto
Onofre Lopes Júnior - Fundação Jose Augusto
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
A palavra da casa<br />
cego Aderaldo defi nia as cores pelas sensações.<br />
O Uma espécie de conceituação Shopenhauneana.<br />
O vermelho era a cor da inquietação, o azul lhe parecia<br />
sossego. Não estou tratando da simbologia plástica<br />
e acadêmica das cores. Isso é assunto de intelectuais<br />
e eu não sou intelectual. Aliás, nem tenho paciência<br />
com intelectuais. O certo é que o cego Aderaldo, que<br />
não deveria ser chamado de cego, mas de o Cantador<br />
Aderaldo, tinha sua própria convicção das sensações<br />
pictóricas. E deliciava o Pe. Alexandrino Suassuna, em<br />
cujo sítio se hospedava quando fazia cantorias pelo sertão<br />
potiguar, com seus conceitos nada ortodoxos. Defi nia o<br />
caçuá pela sensação do grosseiro e não pelos contornos do<br />
couro cru. Explicava que os cambitos, postos na cangalha<br />
para transportar lenha, lhe transmitiam a impressão do<br />
amparo. O verde lhe dava a fotografi a do amanhecer.<br />
“Mas você também não vê o amanhecer”, retrucava o Pe.<br />
Alexandrino. “Ninguém vê o amanhecer. Ele se derrama<br />
antes do olhar”, dizia Aderaldo, que reafi rmava ser verde<br />
o amanhecer.<br />
“O roxo tem a cor do choro e o amarelo é tão instável<br />
quanto o vôo do beija-fl or”. A ser verdade, ou o que é<br />
verdade, da pergunta de Pilatos, é pouco provável que<br />
Aderaldo fosse ingênuo. Ele via mesmo, cada cor, no<br />
seu jeito e na sua capacidade de sublimar a visão. Daí se<br />
concluir que ninguém vê o verde. Ou da lição de Ortega<br />
Y Gasset, “quem está no bosque não vê o bosque, vê<br />
árvores do bosque”. Ou ainda “quem mora próximo à<br />
cascata não escuta o seu estrondo”.<br />
Este texto da abertura da Preá número sete é uma<br />
homenagem a dois homens especiais. Especiais e<br />
diferentes. O cantador Aderaldo e seu amigo e hospedeiro,<br />
o Pe. Alexandrino Suassuna de Alencar.<br />
Aderaldo e sua viola imbatível, seus versos e rimas que<br />
sacudiam os alpendres. Alexandrino e sua fé duvidosa.<br />
O afastamento da vida sacerdotal, a leitura dos gregos e<br />
latinos. A dúvida sobre os dogmas e a ironia fi na contra<br />
a liturgia. Além da coragem pessoal que não escolhia<br />
adversário. Fosse um bispo reacionário ou um cangaceiro<br />
que cercasse a Fazenda Cajuais. Alexandrino morreu em<br />
1955; Aderaldo ainda viveu doze anos, porém nunca mais<br />
andou praquelas bandas.<br />
Aderaldo Ferreira de Araújo fazia da viola os seus olhos<br />
de debulhar o escuro e transformar em luz o código da<br />
música popular.<br />
A noite era pequena e fugaz na fumaça dos cigarros e no<br />
bule de café que acompanhavam a conversa daqueles dois<br />
homens encharcados de dúvidas e solidão.<br />
Taí a Preá número sete. Pintando o sete.<br />
Julho 2004<br />
5