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animais são muito mais que algo somente - Proppi - UFF

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como um morto, comendo comida de morto, e agindo de tal forma potencializa-se o risco<br />

de também se tornar um morto. Entre os Wari‟, é o compartilhamento de chicha azeda, por<br />

parte do jam do enfermo, no mundo dos mortos localizado no fundo dos rios, <strong>que</strong><br />

corresponde à morte definitiva do corpo (kwere-) na terra.<br />

“Quando uma pessoa se encontra gravemente doente, seu jam (<strong>que</strong> tem a forma<br />

humana, como uma réplica do corpo) parte em direção ao mundo dos mortos, localizado<br />

no fundo dos rios. Lá chegando lhe é oferecida chicha azeda em uma grande panela, por<br />

um homem com grandes testículos, chamado Towira Towira. Se ela aceitar a chicha,<br />

permanece sob a água, o <strong>que</strong> corresponde à morte definitiva do corpo (kwere-) na terra:<br />

(“se o Wari‟ beber completamente, seu corpo verdadeiro morre aqui”). [...] Mas o jam<br />

do moribundo pode se recusar a beber a chicha de Towira Towira. Na verdade, os Wari‟<br />

já mortos <strong>que</strong> vivem sob a água, recomendam-lhe <strong>que</strong> rejeite a bebida. Rejeitando a<br />

chicha, o seu jam retorna à terra, e seu corpo se cura” (Vilaça, 1992: 247).<br />

Tal como os Yudjá, os Mbya dizem <strong>que</strong> durante o sono é possível <strong>que</strong> as pessoas<br />

entrem em contato com pessoas <strong>que</strong> já morreram. Locus privilegiado da relação entre<br />

mortos e vivos, os episódios oníricos são tratados de duas formas distintas; os Yudjá<br />

desqualificam esses sonhos, categorizando-os como irreais, para <strong>que</strong> permaneçam<br />

enquanto tais; os Mbya, por outro lado, dispensam uma série de preocupações,<br />

principalmente por parte do sonhador, a aventura onírica o preocupa e o quanto antes ele<br />

deverá contar o sonho a uma pessoa <strong>mais</strong> velha, aos pais ou aos sogros e finalmente a um<br />

xamã. Por alguns dias guardará maiores cuidados, permanecendo a maior parte do tempo<br />

em casa. O distanciamento temporal é <strong>que</strong> poderá apagar os riscos a <strong>que</strong> esteve exposto<br />

durante o sonho; é como se coubesse aos mortos es<strong>que</strong>cer. Quando comparada à etnografia<br />

Wari‟, deve-se observar <strong>que</strong> os Wari‟ mortos têm uma atitude contrária à dos Mbya<br />

mortos. Entre os primeiros, os parentes tentam convencer os vivos a não beberem da<br />

chicha ofertada por Towira Towira, a não se tornarem mortos; os segundos são, por<br />

excelência, os agentes dessa transformação, vide o sonho contado por Tereza (p. 102), em<br />

<strong>que</strong> um marido volta para buscar a esposa e a cunhada. Diferente do morto Wari‟, o morto<br />

Mbya não é um Mbya 38 . Desta<strong>que</strong> deve ser dado, no entanto, ao compartilhamento de<br />

comida e de chicha: em ambos os casos é imprópria a comensalidade com os mortos.<br />

38 Os Mbya não se referem aos mortos como nossos mortos. Estes são referidos sempre na terceira pessoa,<br />

basta observar o sufixo “o” (ele) preposto ao substantivo manõ (morto). Quanto aos Wari‟, deve-se destacar<br />

<strong>que</strong> as categorias Wari‟ e Karawa são relacionais. Um morto <strong>que</strong> tenta capturar seus parentes vivos não o faz<br />

enquanto parente, pois como observou Vilaça “parentes cognatos não se agridem ja<strong>mais</strong>, e não é deste ponto<br />

de vista <strong>que</strong> vêem suas vítimas, mas da<strong>que</strong>le de um predador, de um Wari‟ <strong>que</strong> <strong>que</strong>r matar inimigos e presas”<br />

(Vilaça, 1992: 83-84).<br />

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