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animais são muito mais que algo somente - Proppi - UFF

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significa ter sua alma, ou de um filho recém-nascido, “trocada” – tradução feita pelos<br />

Mbya – à sua revelia, pela caça em demasia com o dono da<strong>que</strong>la espécie.<br />

Entre os Aché Guayaki, grupo nômade das florestas paraguaias, onde o homem só<br />

se completa enquanto caçador, Pierre Clastres ([1972] 1995: 100-101) observa um<br />

procedimento semelhante entre os caçadores. Tal como os Wari‟, este povo não<br />

compartilha do princípio de <strong>que</strong> as espécies possuem donos. Uma consideração é<br />

necessária no entanto: o animal morto é nomeado com outro nome seguido do sufixo gi, o<br />

mesmo princípio <strong>que</strong> nomeia as pessoas 22 . É preciso astúcia com os <strong>ani<strong>mais</strong></strong>, deve se falar<br />

como se falasse de um outro, ou como diz o autor:<br />

“Quanto aos <strong>ani<strong>mais</strong></strong>, há certas regras de polidez a observar a seu respeito. Quando se<br />

os matam é preciso saudá-los; o caçador chega ao acampamento, sua caça pendurada<br />

sobre o ombro nobremente manchado de sangue, ele a deposita e canta em honra do<br />

bicho. Assim o animal não é <strong>somente</strong> uma comida neutra; ser reduzido a isso<br />

irritaria talvez os da sua espécie, não se poderia <strong>mais</strong> flechá-los. Caçar não é<br />

simplesmente matar <strong>ani<strong>mais</strong></strong>, é contrair uma dívida a seu respeito, dívida de <strong>que</strong> se<br />

liberta refazendo a existência, na palavra, dos bichos <strong>que</strong> se matou. Agradecer-lhes por<br />

ter se deixado matar mas sem dizer seu nome corrente. Assim brevi, o tapir, será<br />

nomeado morangi, e kande, o pe<strong>que</strong>no pecari, receberá o nome de barugi. É preciso<br />

astúcia com os <strong>ani<strong>mais</strong></strong>, é preciso fingir <strong>que</strong> se fala com algum outro, e, enganando-se<br />

assim a caça, abole-se a agressão dos homens, suprime-se o ato mortal. O canto do<br />

caçador sela o acordo secreto dos homens e dos <strong>ani<strong>mais</strong></strong>”. (itálico no original; negrito<br />

meu)<br />

Mais <strong>que</strong> falar em uma contraprestação para com os donos das espécies penso <strong>que</strong><br />

essa relação deve ser compreendida em um sentido <strong>mais</strong> amplo ou como apontei <strong>mais</strong><br />

acima, articulador de vários níveis da socialidade mbya. Vejamos. Quando tratei das roças,<br />

empreguei a expressão “dono de roça”. A expressão glosada como dono é -ja, no entanto<br />

essa acepção é <strong>mais</strong> comum quando se trata de emprego relativo a “donos de lugares”.<br />

Relembro <strong>que</strong> donos de roças são, na maioria das vezes, homens casados e com filhos,<br />

capazes de dar início à empreitada de derrubada da mata, limpeza do terreno e plantio.<br />

Citei também o caso de seu Miguel <strong>que</strong> possuía uma roça com status dúbio, coletiva<br />

quando ele falava e particular quando outras pessoas falavam. Expus um código <strong>que</strong><br />

definia uma eti<strong>que</strong>ta da generosidade, sempre <strong>que</strong> alguém <strong>que</strong>ria <strong>algo</strong> se dirigia a ele e<br />

dizia-lhe o <strong>que</strong> desejava. A ele não cabia negar. Lourenço é o segundo caso, outro homem<br />

<strong>que</strong> possuía duas roças e <strong>que</strong> dava aos seus concidadãos o produto a ser colhido. Em 2005<br />

uma mulher pediu <strong>que</strong> eu fosse até a casa de Lourenço e pedisse a ele mandioca, nessa<br />

22 É sabido <strong>que</strong> a onomástica Guayaki e Guarani enquadram-se no <strong>que</strong> Viveiros de Castro (1986: 383-4)<br />

definiu como sistema canibal.<br />

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