130 ARTIGO POR MÁRCIA MENDONÇA foto ASSOCIATED PRESS Muito além do feminino e do masculino Moda: um campo no qual representações e simbolismos ganham dimensão <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Abril <strong>2015</strong>
131 Uma bela discussão sobre gênero. Novo diretor-criativo da Gucci, Alessandro Michele, passou <strong>por</strong> prova de fogo na grife ao apresentar, em janeiro deste ano, em Milão, a coleção masculina de inverno 2016, propondo que o homem use roupas com influência do guarda-roupa feminino. E mais, colocou mulheres desfilando suas criações masculinas na passarela. Miuccia Prada trouxe também para sua coleção 2016, jaquetas curtas e calças afuniladas, endossando a ideia. Para ela, há uma evolução nesse movimento, e a moda masculina, muito previsível e limitada, vem buscando novas influências, e a tendência é a de que o feminino e o masculino se aproximem cada vez mais. Para o estilista brasileiro João Pimenta, “estamos tão avançados que não faz sentido discutirmos o que é masculino e o que é o feminino hoje”. Até o momento nenhuma novidade. Não é de hoje que a moda flerta com a discussão sobre gênero e sobre a histórica interface entre masculino e feminino. Coco Chanel, no início da década de 1920, apropriou-se de suéteres, terninhos, casacos, calças−peças exclusivamente masculinas, para criar looks que tornaram-se atem<strong>por</strong>ais, dando início à relação entre mulheres e a alfaiataria, muito presente nas vestimentas femininas durante a Segunda Guerra Mundial e cada vez mais em destaque na contem<strong>por</strong>aneidade. Chanel rompeu com a rigidez do traje feminino e imprimiu um estilo de se vestir mais simples, e que chamamos hoje de minimalista. Em 1930, a atriz Marlene Dietrich provocou enorme frisson ao usar um modelo de terno e gravata no filme Marrocos, de Josef Von Stenberg. Dietrich acabou <strong>por</strong> ditar moda no período entreguerras (1914-1918 e 1939-1945), provocando grande discussão sobre o reposicionamento da mulher e sua afirmação na sociedade moderna. Nos anos 50, o rock influenciou a moda e levou para o guarda-roupa feminino e masculino a calça jeans e a camiseta. Na década seguinte, nova explosão, com Mary Quant e o surgimento da minissaia, Yves Saint Laurent com o smoking feminino, Paco Rabane e suas criações futuristas. Da segunda metade do século XX até os dias atuais, foram, e são, muitos os estilistas que dialogoram e interpretaram – e que dialogam, cada vez mais –, com o feminino/masculino. Muitas são as reinvenções, apropriações e assimilações na moda, e a androginia – ou inversão de gêneros, ou a soma dos dois ou nenhum dos dois –, tamanha é a discussão e reflexão sobre o assunto que tem se intensificado cada vez mais nesse campo. Para a feminista Judith Butler, “o gênero deixou de ser uma identidade estável, ou lugar de agenciamento do qual as ações procedem. O gênero é uma identidade tenuemente constituída <strong>por</strong> meio da repetição estilizada de atos, gestos, performances variadas que constroem a ilusão de self com a sexualidade definida”. Nessa perspectiva, recorremos ao filme Orlando, realizado em 1992, pela cineasta inglesa Sally Potter, como forma de tematizarmos o assunto. O ponto de partida do filme é a obra homônima Orlando, de autoria da escritora inglesa Virgínia Woolf. Nascido homem, o lorde Orlando, após séculos de existência e desventuras (a obra de Woolf situa-se em quatro séculos, do século XVI ao início do século XX), acorda, num belo dia, mulher. É ordenado pela Rainha Elizabeth I a permancer eternamente jovem, e sai de sua condição de aristocrata para dândi, dama, andrógino. Sua mudança mais radical é sua transformação sexual, seguida de seus relacionamentos, afetos, desacertos. Woolf criou uma das obras mais instigantes da literatura mundial sobre a discussão do gênero, adaptada de maneira extremamente original <strong>por</strong> Potter. A escolha de Tilda Swinton para viver Orlando é mais do que acertada, pois é uma das atrizes mais andróginas que o cinema já teve. Em 2013, estrelou campanha da marca Chanel e foi fotografada <strong>por</strong> Karl Lagerfeld. Para o papel da Rainha Elizabeth I, o ator Quentin Crisp foi escalado <strong>por</strong> Sally Potter. O figurino, assinado <strong>por</strong> Sandy Powell, é surpreendente, afinal, abrange quatro séculos, épocas e estilos distintos, como o rococó, o clássico e o moderno. É impecável ainda na direção de arte e fotografia, e chegou a ser indicado a dois Oscar, o de Melhor Direção de Arte e Melhor Figurino. Orlando nos conduz a uma discussão pertinente que permeia arte, gênero, moda, sexualidade e corpo, e que nos leva a refletir quanto a moda e a subjetividade são indissociáveis, e com<strong>por</strong>tam ambiguidades, paradoxalidades, ideologias e identidades múltiplas. Pensar a moda, neste contexto, é observar, analisar seus discursos, sua multiplicidade de cenários e de propostas, cada vez mais mutantes e feéricas, deixando de lado seu ar de frivolidade, tornando-se, um campo no qual as representações, os simbolismos, os questionamentos e os dilemas ganham dimensão. Afinal, a moda pensa além do feminino e do masculino.ø Márcia Mendonça é historiadora, professora e jornalista <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Abril <strong>2015</strong>