A Prosa Literária de Orlando da Costa - Universidade Aberta
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o tio <strong>de</strong>ixou-lhe um outro legado metafórico, o diário, uma ligação perturbadora<br />
aos seus antepassados. Convergem para a angústia do personagem principal duas<br />
situações alegóricas <strong>de</strong> morte, morte telúrica enraiza<strong>da</strong> na História e morte<br />
espiritual, a morte <strong>da</strong> pessoa que ama, “o que o tempo leva, jamais se reconstrói”.<br />
O refúgio ao escrever no diário acaba resultando num monte <strong>de</strong> papéis que não<br />
são mais que retalhos <strong>de</strong> uma vi<strong>da</strong> rasga<strong>da</strong> por uma “dilacera<strong>da</strong> solidão”<br />
(OUOMM, p. 313).<br />
O título do livro, O Último Olhar <strong>de</strong> Manú Miran<strong>da</strong>, retrata a crise<br />
profun<strong>da</strong> <strong>de</strong> uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong> em conflito <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação. Manú conheceu outra<br />
socie<strong>da</strong><strong>de</strong> para além <strong>da</strong> goesa, viveu, embora por pouco tempo, num meio<br />
conflituoso em crise política, conviveu com uma cultura mais oci<strong>de</strong>ntaliza<strong>da</strong>. Em<br />
Bombaim “gigantesca e famosa ci<strong>da</strong><strong>de</strong> colonial do império britânico, porto <strong>de</strong> mil<br />
comércios e muitas centenas <strong>de</strong> milhares <strong>de</strong> ilusões” (p. 219).<br />
O personagem “<strong>de</strong>smonta” o seu eu interior, e, entre os fragmentos<br />
procura resolver os seus conflitos. Mas envelhecera e só herdou os “ rumores” que<br />
passavam <strong>de</strong> geração em geração:<br />
Mas muito antes que o futuro chegue a esta casa por mim man<strong>da</strong><strong>da</strong><br />
reconstruir» – estava escrito como uma maldição, por outro punho, com outra<br />
tinta, na mesma página do diário iniciado gerações atrás – «haverá sempre<br />
um vazio quieto e pesado, cercado por pare<strong>de</strong>s tão altas que as palavras se<br />
per<strong>de</strong>rão a partir <strong>da</strong> altura <strong>de</strong> um homem.» [...] «Hão-<strong>de</strong> soltar-se como as<br />
pétalas <strong>de</strong> uma flor antes <strong>de</strong> se converterem em simples sons e há misturar-se<br />
com o ar e o pó dourado pela luz do sol filtra<strong>da</strong> por frestas, janelões e<br />
reposteiros, e, finalmente, pousarão como um véu <strong>de</strong> silêncio frágil no gesto<br />
imobilizado <strong>de</strong> mãos postas sobre os joelhos ou assentes nos braços dos<br />
ca<strong>de</strong>irões <strong>de</strong> espal<strong>da</strong>r sem nunca, nunca tocar o chão, <strong>de</strong>ixando <strong>de</strong> sobra<br />
apenas o espaço para os rumores do vento vindo <strong>da</strong>s traseiras, que <strong>de</strong><br />
enigmáticos se farão perversos e familiares tal como os do sobrado que cairão<br />
como teias <strong>de</strong> aranha em busca <strong>de</strong> luz, rumores que já ouço, apesar <strong>da</strong> minha<br />
sur<strong>de</strong>z avança<strong>da</strong>, e que fazem parte <strong>da</strong> herança que lego ao mais directo<br />
<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte do sexo masculino, que, entre outros que houver, mais a merecer<br />
(OUOMM, p.17).<br />
Os rumores do passado surgem sistematicamente confusos, a pouco e<br />
pouco a solidão toma conta dos seus dias e na procura <strong>de</strong> alívio Manú Miran<strong>da</strong><br />
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