OS FUNDAMENTOS DA LIBERDADE
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196 Os Fundamentos da Liberdade<br />
A obra de Locke passou a ser conhecida principalmente como uma<br />
abrangente justificativa filosófica da Revolução Gloriosa, < 60 > e a contribuição<br />
original deste autor está principalmente em suas especulações<br />
mais amplas acerca dos fundamentos filosóficos do Estado. É possível<br />
que as opiniões sobre o valor da obra sejam divergentes. Entretanto, o<br />
aspecto importante, hoje como na época, e que nos interessa principalmente<br />
aqui, é a codificação da doutrina política vitoriosa, dos princípios<br />
práticos que, segundo se concluiu, a partir de então deveriam controlar<br />
os poderes do governo. (61)<br />
Embora em sua investigação filosófica Locke se preocupe funda-<br />
mission to the Supréme Authority, etc. (1688), citado na reedição em Harleian Miscellany<br />
(Londres, 1808), I, especialmente a página 442: "A exigência de liberdade sempre se justifica<br />
por si mesma, a menos que se renuncie a ela ou que seja limitada por algum acordo<br />
especial. ( ... )No governo da sociedade civil há que se fazer ampla distinção entre o poder<br />
de fazer leis para regulamentar sua condução e o poder de executá-las. Devemos ainda supor<br />
que a autoridade suprema se encontra com aqueles aos quais está reservado o Poder<br />
Legislativo, e não com aqueles que detêm apenas o Poder Executivo, que constitui um<br />
mero fideicomisso quando separado do Legislativo". Também, na página 447: "As medidas<br />
do poder, e conseqüentemente as de obediêncÍà, devem ser deduzidas das leis expressas<br />
de qualquer Estado ou grupo de indivíduos, dos juramentos por eles prestados;<br />
ou da prescrição imemorial e da posse prolongada, ambas as quais concedem titulo e,<br />
após longo prazo, tornam legítimo o título ilegítimo, pois a prescrição, quando ultrapassa<br />
a memória dos homens e deixa de ser pretendida por outro interessado, concede, em virtude<br />
do consentimento de todos, título justo e legítimo. Desse modo, os diversos degraus<br />
da toda autoridade civil têm de decorrer de leis expressas, costumes imemoriais ou juramentos<br />
especiais que os súditos prestam a seus príncipes, devendo ainda estabelecer-secomo<br />
princípio que, em todas as disputas entre poder e liberdade, ao poder cabe sempre o<br />
ônus da prova, mas a liberdade se prova por si mesma, pois aquele está fundado na lei positiva<br />
a esta na lei natural". Página 446: "O objetivo principal de toda a nossa legislação<br />
e das várias leis da nossa Constituição é garantir e manter nossa liberdade". A este folheto<br />
referia-se principalmente um descobridor contemporâneo da liberdade inglesa, G. Miege<br />
(ver Nota 2 deste capítulo), ao afirmar que "nenhum súdito no mundo desfrutou tantas<br />
liberdades fundamentais e transmissíveis como o povo da Inglaterra" e que "sua condição<br />
foi, portanto, muito feliz e preferível à de qualquer outro súdito europeu" (op. cit.,<br />
páginas 512-513).<br />
60 Ainda se pode dizer isto, embora atualmente se acredite que a obra Treatise tenha<br />
sido redigida antes da Revolução de 1688.<br />
61 Cf. J. W. Gough, John Locke's Politicai Philosophy (Oxford, 1950). Vale a pena<br />
verificar até que ponto Locke, ao tratar dos assuntos aqui discutidos, se limitou simplesmente<br />
a resumir opiniões expostas muito antes pelos juristas do período. Especialmente<br />
importante a respeito desse assunto é Sir Matthew Hale, o qual, por volta de 1673, em um<br />
manuscrito, em réplica a Hobbes, que provavelmente Locke teve em mãos (ver a carta de<br />
Aubrey a Locke, citada em Cranston, op. cit., página 152), afirmara que "para evitar<br />
aquela grande incerteza na aplicação da razão por determinadas pessoas, em casos determinados;<br />
e, desse modo, para que os homens pudessem entender dentro de que norma e<br />
medida haveriam de viver e possuir, e para que não vivessem sujeitos à razão arbitrária,<br />
desconhecida e incerta de determinadas pessoas, foi que, em todas as épocas, os mais sábios<br />
reconheceram e concordaram quanto a certas leis, normas e métodos da administração<br />
de justiça comum, e que estes fossem tão específicos e imutáveis como se poderia conceber"<br />
("Sir Matthew Hale's Criticism on Hobbes's Dialogue of the Common Laws",<br />
em apêndice a A History oj English Law, de W. S. Holdsworth [Londres, 1924], V, 503).<br />
As Origens do Estado de Direito 197<br />
mentalmente com a fonte que legitima o poder e com os objetivos do<br />
governo em geral, o problema prático no qual ele se concentra é como<br />
impedir que o poder, independentemente de quem o exerce, se torne arbitrário:<br />
"A liberdade dos governados consiste em pautar a própria<br />
existência em uma norma permanente, comum a cada membro daquela<br />
sociedade, proclamada como tal pelo Poder Legislativo; liberdade de<br />
seguir minha própria vontadç em todas as situações não prescritas pela<br />
norma e de não se estar sujeito à vontade inconstante, incerta e arbitrária<br />
de outro homem". < 62 > Sua tese opõe-se principalmente ao "exercício<br />
irregular e incerto do poder": < 63 > o conceito básico é que "aquele que<br />
detém o poder legislativo ou supremo em uma comunidade deve governar<br />
mediante leis preestabelecidas permanentes, promulgadas e conhecidas<br />
pelo povo, e não por decretos extraordinários; mediante juízes<br />
imparciais e íntegros que terão de decidir as controvérsias com base nestas<br />
leis; e empregar as forças internas da comunidade unicamente no<br />
cumprimento de tais leis". < 64 > A própria assembléia legislativa não tem<br />
"poderes absolutos e arbitrários", < 65 > "não pode assumir o poder de<br />
governar mediante decretos arbitrários e extraordinários, mas está obrigadaa<br />
ministrar justiça e a decidir a respeito dos direitos dos súditos<br />
mediante leis promulgadas e permanentes e juízes autorizados e conhecidos",<br />
enquanto "o supremo execut(}r das leis ... não tem outro poder,<br />
nem vontade, a não ser aquele da lei''. < 67 > Locke recusou-se a reconhecer<br />
qualquer poder soberano, e o Tratado foi considerado um ataque<br />
à própria idéia de soberania. < 68 > A principal salvaguarda prática<br />
proposta por Locke contra o abuso de autoridade é a separação de poderes,<br />
que ele expõe. talvez menos claramente e em uma forma menos<br />
chã do que a utilizada por seus predecessores. < 69 > Sua maior preocupação<br />
está na maneira de limitar a discricionariedade "daquele que detém<br />
o poder executivo", < 70 > mas não oferece nenhuma proteção especial.<br />
No entanto, seu objetivo último é aquilo.que atualmente definimos como<br />
"restrição do poder": os homens "elegem e autorizam um legislativo<br />
para que possam existir leis e ser estabelecidas normas que sirvam de<br />
62 J. Locke, The Second Treatise ojCivil Government, ed. J. W. Gough (Oxford,<br />
1946), Sec. 22, página 13.<br />
63 Jbid., Sec. 127, página 63.<br />
64 Ibid., Sec. 131, página 64.<br />
65 Ibid., Sec. 137, página 69.<br />
66 Jbid., Sec. 136, página 68.<br />
67 Ibid., Sec. 151, página 75.<br />
68 Ver J. N. Figgis, The Divine Right ojKings, página 242; W. S. Holdsworth, Some<br />
Lessonsjrom Our Legal History (Nova Iorque, 1928), página 134, e C. E. Vaughan, Studies<br />
in the History of Politicai Philosophy, bejore and ajter Rousseau (Manchester: Manchester<br />
University Press, 1939), I, página 134.<br />
69 John Locke, Second Treatise, Cap. XIII. Comparar com a Nota 56 acima.<br />
70 Jbid., Sec. 159, página 80.