26.06.2013 Views

OS FUNDAMENTOS DA LIBERDADE

OS FUNDAMENTOS DA LIBERDADE

OS FUNDAMENTOS DA LIBERDADE

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

106 Os Fundamentos da Liberdade<br />

de que é o valor do desempenho de uma pessoa, e não o seu mérito, que<br />

determina nossas obrigações para com ela. Embora os critérios que<br />

orientam as relações mais estreitas sejam os mais variados, no nosso relacionamento<br />

comum, não acreditamos que, como alguém nos prestou<br />

um serviço com grande sacrifício, nosso reconhecimento a essa pessoa<br />

seja determinado por isto, desde que possamos obter de outra pessoa o<br />

mesmo serviço com facilidade. Em nosso relacionamento com os outros,<br />

sentimos que estamos agindo com justiça quando recompensamos<br />

o valor do que recebemos com igual valor, sem nos preocuparmos com<br />

quanto deva ter custado ao indivíduo prestar-nos aquele serviço. O que<br />

determina a nossa responsabilidade é a vantagem que obtemos daquilo<br />

que os outros nos oferecem, e não o seu mérito em fornecê-lo. Nas nossas<br />

relações com os outros também esperamos ser remunerados não de<br />

acordo com o nosso mérito subjetivo, mas de acordo com o valor que<br />

os outros atribuem aos nossos serviços. De fato, quando pensamos nas<br />

nossas relações com determinadas pessoas, em geral estamos plenamente<br />

conscientes de que o que caracteriza um homem livre é depender, para<br />

sua sobrevivência, não do que outras pessoas consideram ser seu mérito,<br />

mas tão-somente daquilo que ele tem a oferecer-lhes. Somente<br />

quando pensamos que nossa posição ou nossa renda são determinadas<br />

pela "soc;iedade" como um todo é que reivindicamos uma recompensa<br />

segundo o mérito.<br />

Embora o valor moral ou o mérito seja uma espécie de valor, nem<br />

todo valor é valor moral, e a maioria dos nossos julgamentos de valor<br />

não é constituída de julgamentos morais. É ponto de importância capital<br />

que assim deva ser em uma sociedade livre; e o fato de não distinguirmos<br />

entre valor e mérito tem dado origem a grave confusão. Não<br />

admiramos necessariamente todas as atividades cujos resultados valorizamos;<br />

e, na maioria dos casos em que valorizamos aquilo que recebemos,<br />

não estamos em condições de determinar o mérito de quem o proporcionou<br />

a nós. Se a capacidade de um indivíduo em determinado<br />

campo de atividade é mais valiosa depois de trinta anos de trabalho do<br />

que era anteriormente, isso independe do fato de esses trinta anos terem<br />

sido muito compensadores e agradáveis ou de terem sido um período de<br />

grandes privações e preocupações. Se a prática de um hobby desenvolve<br />

alguma habilidade especial, ou se uma invenção acidental se torna extremamente<br />

útil para os demais, o fato de que tenham pouco mérito<br />

não os torna menos valiosos do que se tivessem resultado de grande sacrifício<br />

pessoal.<br />

Esta diferença entre valor e mérito não é peculiar a nenhuma sociedade<br />

em particular: ela existe em qualquer sociedade. Poderíamos, naturalmente,<br />

tentar fazer com que as recompensas correspondessem ao<br />

mérito e não ao valor, mas provavelmente não conseguiríamos esse objetivo.<br />

Ao agir assim, destruiríamos os incentivos que permitem às pes-<br />

Igualdade, Valor e Mérito 107<br />

soas decidir por si mesmas sobre o que devem fazer. Além disso, é extremamente<br />

duvidoso que, ainda que conseguíssemos até certo ponto<br />

fazer com que as recompensas correspondessem ao mérito, produzíssemos<br />

uma ordem social mais atraente ou mesmo tolerável. Uma sociedade<br />

em que se pressupõe, em geral, que uma elevada renda é prova de<br />

mérito e uma baixa renda equivale a falta de mérito; em que todos acreditam<br />

que a posição e a remuneração correspondem ao mérito; em que<br />

não há outro caminho para o sucesso senão a aprovação da conduta do<br />

indivíduo pela maioria dos seus concidadãos, seria provavelmente muito<br />

mais insuportável para os que não tiveram êxito do que outra em que<br />

se reconhecesse abertamente não existir relação necessária entre mérito<br />

e sucesso. < 15 l<br />

Provavelmente contribuiríamos muito mais para a felicidade humana<br />

se, em vez de tentarmos fazer a remuneração corresponder ao<br />

mérito, esclarecêssemos melhor quão incerta é a relação entre valor e<br />

mérito. Todos nós estamos, provavelmente, demasiado dispostos a atribuir<br />

mérito aos indivíduos quando, de fato, existe apenas valor superior.<br />

O fato de um indivíduo ou grupo possuir uma educação ou cultura<br />

superior certamente representa um valor elevado e constitui um bem<br />

para toda a sociedade em que eles se encontram; isto não implica, porém,<br />

grande mérito. Popularidade e consideração não dependem do<br />

mérito, nem o sucesso financeiro. Na verdade, é porque estamos tão<br />

acostumados a pressupor um mérito não raro inexistente, quando só<br />

existe valor, que hesitamos, em certos casos, quando a discrepância é<br />

demasiado grande para ser ignorada.<br />

Devemos tentar reconhecer o mérito especial de alguém sempre<br />

que não tenha sido adequadamente recompensado. Mas o problema de<br />

se recompensarem ações de elevado mérito, que desejamos sejam tomadas<br />

como exemplo, é diferente do problema dos incentivos rios quais se<br />

baseia o andamento normal da sociedade. Uma sociedade livre produz<br />

instituições nas quais, para aqueles que assim preferirem, o progresso<br />

de uin indivíduo depende do julgamento de algum superior ou da maioria<br />

dos seus concidadãos. De fato, à medida que as organizações crescem<br />

e se tornam mais complexas, será cada vez mais difícil definir a<br />

15 Cf. Crosland, op. cit., página 235: "Mesmo que todos os que fracassaram pudessem<br />

convencer-se de que tiveram a mesma oportunidade que os outros, isto não modificaria<br />

sua insatisfação; ao contrário, ela poderia aumentar. Quando se sabe que as oportunidades<br />

são desiguais, e os critérios de seleção favorecem a maior riqueza ou a origem, podemos<br />

consolar-nos dizendo que nunca tivemos uma oportunidade adequada, que o sistema<br />

foi iníquo e os padrões de julgamento muito parciais. Mas se a seleção se faz claramente<br />

segundo o mérito das pessoas, esse consolo desaparece e o fracasso produz um sentimento<br />

de total inferioridade, para o qual não haverá desculpa ou conforto possível; e isto,<br />

por uma peculiaridade da natureza humana, na realidade aumenta a inveja e o ressentimento<br />

com o sucesso alheio". Cf. também o capítulo XXIV, na Nota 8. Ainda não li o<br />

livro de Michael Young, The Rise of The Meritocracy (Londres, 1958), que, a julgar por<br />

algumas resenhas, parece tratar com muita clareza destes problemas.

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!