OS FUNDAMENTOS DA LIBERDADE
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242 Os Liberdade<br />
Uma das razões baseia-se no fato de que os problemas levantados<br />
nas disputas em torno de atos administrativos exigem um conhecimento<br />
dos distintos ramos do direito bem como dos fatos concorrentes, que o<br />
juiz comum, especialista principalmente em direito privado ou penal,<br />
simplesmente não tem. Trata-se de um argumento de peso e provavelmente<br />
definitivo, mas que não justifica uma separação maior, entre os<br />
tribunais que julgam disputas privadas e os que julgam disputas administrativas,<br />
do que aquela, usual, entre tribunais que se ocupam de assuntos<br />
de direito privado, direito comercial ou direito penal. Os tribunais<br />
administrativos, separados dos tribunais ordinários somente nesse<br />
sentido, poderiam continuar independentes do governo como são estes<br />
últimos e tratar unicamente da administração da lei, ou seja, da aplicação<br />
de um corpo de normas preexistentes.<br />
Entretanto, os tribunais administrativos independentes também<br />
podem ser considerados necessários pela razão totalmente diferente de<br />
que disputas em torno da legalidade de um ato que emana da administração<br />
não podem ser resolvidas como pura matéria jurídica, uma vez<br />
que sempre implicam questões de política ou conveniência governamental.<br />
Os tribunais instituídos separadamente para esse fim sempre estarão<br />
voltados para os objetivos do governo do momento, nunca podendo<br />
ser completamente independentes: eles devem ser parte do aparato<br />
administrativo, cabendo-lhes obedecer a uma orientação, pelo menos<br />
de seu diretor executivo. Seu objetivo não será tanto a proteção do indivíduo<br />
contra a violação de sua esfera privada pelos órgãos governamentais,<br />
como garantir que não haja interferência nas intenções e instruções<br />
do governo. Constituirão um instrumento para assegurar que os<br />
organismos subordinados realizem a vontade do governo (inclusive a<br />
do Legislativo) e não um meio de proteção do indivíduo.<br />
A distinção entre estas tarefas só pode ser estabelecida com nitidez<br />
e sem ambigüidades quando há um corpo de normas legais e pormenorizadas<br />
para guiar e delimitar a atuação da administração. Ela se torna<br />
inevitavelmente confusa quando os tribunais administrativos são criados<br />
no momento em que a elaboração de tais normas não foi ainda empreendida<br />
por legislação e jurisprudência. Em tal situação, uma-das tarefas<br />
necessárias destes tribunais consistirá em formular como norma<br />
legal aquilo que antes havia sido mera norma interna da administração;<br />
Ao fazer isso, tais tribunais encontrarão grande dificuldade em distinguir<br />
entre as normas internas de caráter geral e as que expressam tão-somente<br />
objetivos específicos da política em vigor.<br />
Isto ocorreu na Alemanha nos anos de 1860 e 1870, quando se procurou<br />
pôr em prática o ideal, há muito acalentado, do Rechtsstaat. A<br />
tese que acabou derrotando os velhos argumentos em favor do justicialism<br />
considerava que seria impraticável deixar aos juízes ordinários,<br />
sem especialização adequada, a missão de resolver as intricadas ques-<br />
O Liberalismo e a Burocracia: o<br />
tões geradas pelos atos administrativos. Por isso, foram criados novos<br />
tribunais administrativos que tratariam unicamente de questões legais e<br />
teriam total independência, esperando-se que, com o passar do tempo,<br />
assumissem um controle estritamente judicial de toda a ação administrativa.<br />
Para os homens que criaram o sistema, especialmente seu principal<br />
idealizador, Rudolf von Gneist, e para a maioria dos especialistas alemães<br />
em direito administrativo posteriores, a instituição de um sistema<br />
de tribunais administrativos independentes foi o feito que coroou o<br />
Rechtsstaat, a realização definitiva do Estado de Direito. ( 34 l O fato de<br />
que ainda se fizessem inúmeras concessões a decisões administrativas,<br />
na realidade arbitrárias, pareceu uma falha insignificante e temporária,<br />
tornada inevitável pelas condições da época. Os criadores do sistema<br />
acreditavam ser necessário, para que o aparato administrativo continuasse<br />
funcionando, conceder-lhe, durante certo tempo, amplos poderes<br />
discricionários, até que fosse fixado um corpo definitivo de normas<br />
de ação.<br />
Dessa maneira, embora do ponto de vista organizacional a criação<br />
de tribunais administrativos independentes parecesse a etapa final da<br />
estrutura institucional idealizada para garantir o Estado de Direito, a<br />
tarefa mais difícil ainda estava por vir. A superposição de um aparato<br />
de controle judicial a uma estrutura burocrática firmemente estabelecida<br />
se tornaria efetiva somente se a tarefa de legislar continuasse de<br />
acordo com o espírito que havia presidido a concepção de todo o sistema.<br />
Na realidade, a concretização da estrutura elaborada para servir ao<br />
ideal do Estado de Direito coincidiu mais ou menos com o abandono<br />
deste mesmo ideal. Justamente na época em que o novo mecanismo foi<br />
introduzido, iniciou-se uma importante reviravolta das tendências intelectuais;<br />
os conceitos do liberalismo que tinham como objetivo principal<br />
o Rechtsstaat foram abandonados. Pelos anos de 1870 e 1880,<br />
quando nos Estados alemães (e também na França) o sistema de tribunais<br />
administrativos alcançou sua configuração final, começou a ganhar<br />
força o novo movimento rumo ao socialismo de Estado e ao Estado<br />
previdenciário. Conseqüentemente, já arrefecera a disposição para<br />
implementar o conceito de governo limitado que as novas instituições<br />
visavam a servir, mediante uma gradativa eliminação, por meio delegislação,<br />
dos poderes discricionários da administração. De fato, a tendência<br />
era, então, ampliar aquelas imperfeições do recém-criado sistema,<br />
isentando explicitamente da judicial review os poderes discricionários<br />
exigidos pelas novas tarefas do governo.<br />
34 Ver, por exemplo, G. Radbruch, Eínführung in die Rechtswíssenschaft (2? ed.;<br />
Leipzig, 1913), página 108; F. Fleiner, ínstitutionen des deutschen Verwaltungsrechtes<br />
(8? ed.; Tübingen, 1928), e E. Forsthoff, Lehrbuch des Verwaltungsrechts, I (Munique,<br />
1950), página 394.