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OS FUNDAMENTOS DA LIBERDADE

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250 Os Fundamentos da Liberdade<br />

É este fato que torna tão ameaçadores os ataques persistentes ao<br />

princípio do Estado de Direito. O perigo é ainda maior porque muitas<br />

das aplicações da supremacia da lei são também ideais dos quais podemos<br />

desejar aproximar-nos, mas que nunca poderemos realizar totalmente.<br />

Se o ideal do Estado de Direito estiver firmemente arraigado na<br />

opinião pública, a legislação e a jurisprudência tenderão a aproximar-se<br />

dele cada vez mais. Mas se for visto como um ideal impraticável, ou<br />

mesmo indesejável, e as pessoas deixarem de lutar pela sua realização,<br />

desaparecerá rapidamente, regredindo a sociedade para um estado de<br />

tirania arbitrária. Isto é o que tem ameaçado, nas duas ou três últimas<br />

gerações, todo o mundo ocidental.<br />

É igualmente importante lembrar que o Estado de Direito limita o<br />

governo apenas em suas atividades coercitivas. ( 7 ) Estas jamais serão as<br />

únicas funções do governo. Mesmo para fazer cumprir a lei, o governo<br />

precisa de um aparato de recursos humanos e materiais que deve administrar.<br />

E existem áreas inteiras de atividade governamental, como a<br />

política externa, em que o problema da coerção dos cidadãos normalmente<br />

não surge. Voltaremos a esta distinção entre atividades coercitivas<br />

e não coercitivas do governo. Por enquanto, o que importa é saber<br />

que o Estado de Direito se refere apenas às primeiras.<br />

O principal meio de coerção de que o governo dispõe é a punição.<br />

No Estado de Direito, o governo pode violar a esfera privada de um indivíduo<br />

apenas como punição por este haver infringido uma norma geral<br />

conhecida. O princípio "nullum crimen, nulla poena sine lege" ( 8 J é,<br />

assim, sua conseqüência mais importante. Mas, embora esta afirmação<br />

possa parecer inicialmente clara e inequívoca, uma série de dificuldades<br />

surgirá se nos perguntarmos o que a palavra "lei" significa exatamente.<br />

Certamente o princípio não se cumpriria se a lei dissesse apenas que to-<br />

zerischen Demokratie (Zurique, 1933), reeditado em Ausgewiihlte Schrijten und Reden<br />

(Zurique, 1941); e L. Duguit, Traité de droit contitutionnel (2? edição; Paris, 1921), página<br />

408.<br />

7 Parece ter sido a incompreensão desse problema por Lionel Robbins ("Freedom<br />

and Order", em Economics and Public Policy [Brookings Lectures, 1954 (Washington,<br />

DC., 1955)], página 153) que o fez temer que sugerir "uma concepção de governo por demais<br />

limitada à execução de leis conhecidas, excluindo fur.ções que dependem da iniciativa<br />

e do poder discricionário que sem distorção não podem ficar fora do quadro geral",<br />

simplificasse nossa posição e a expusesse ao ridículo.<br />

8 Cf. S. Glaser, "Nullum crimen sine lege", lo urna/ of Compara tive Legislation and<br />

International Law, 3? Sér., Vol. XXIV (1942); H.B. Gerland, "Nulla poena sine lege",<br />

em Die Grundrechte und Grundpflichten der Reichsverjassung, Vol. I (Berlim, 1929); J.<br />

Hall, "Nulla poena sine lege", Yale Law Journal, Vol. XLVII (1937-38); De la Morandiere,<br />

De la reg/e nu/la poena sine lege (Paris, 1910); A. Schottlander, Die geschicht/iche<br />

Entwicklung des Satzes: Nu/la poena sine lege ("Strafrechtliche Abhandlungen", Vol.<br />

CXXXII [Breslau, 1911]); e O. Giacchi, "Precedenti canonistici dei principio 'Nullum<br />

crimen sine proevia lege penali' ",em Studi in onore di F. Scaduto, V o!. I (Milão, 1936).<br />

Quanto à possibilidade de tal princípio constituir pressuposto fundamental do Estado de<br />

Direito, ver Dicey, Constitution, página 187.<br />

As Salvaguardas da Liberdade Individual 251<br />

dos os que desobedecem às ordens de alguma autoridade serão punidos<br />

de uma forma específica. Porém, mesmo nos países mais livres a lei freqüentemente<br />

parece possibilitar tais atos de coerção. Talvez não haja<br />

um país em que um indivíduo não se torne, em certas ocasiões, passível<br />

de punição por "um ato que implica prejuízo público" ou por "perturbar<br />

a ordem pública" ou por "obstruir a ação da polícia" - como<br />

quando ele desobedece a um policial. Portanto, não compreenderemos<br />

totalmente mesmo essa parte crucial da doutrina se não examinarmos<br />

todo o complexo de princípios que, juntos, possibilitam a existência do<br />

Estado de Direito.<br />

2. Os Atributos da Verdadeira Lei<br />

Vimos anteriormente que o ideal da supremacia da lei pressupõe<br />

uma concepção bem definida do que significa a palavra "lei" e que<br />

nem todos os atos emanados da autoridade legislativa constituem uma<br />

lei neste sentido. ( 9 J Na prática corrente, tudo que foi estabelecido de<br />

maneira apropriada por uma autoridade legislativa é chamado "lei".<br />

Mas só algumas dessas leis, no sentido formal da palavra (lOJ- e hoje em<br />

dia geralmente apenas uma proporção muito pequena -são leis substan-<br />

9 Ver particularmente Carl Schmitt, Unabhiingigkeit der Richter, Gleichheit vor dem<br />

Gesetz und Gewiihrleistung des Privateigentums nach der Weimarer Verjassung (Berlim,<br />

1926), e Verjassungslehre.<br />

10 Sobre esta distinção, ver P. Laband, Staatsrecht des deutschen Reiches (5? edição,<br />

Tübingen, 1911-14), II, 54-56; E. Seligmann, Der Begriff des Gesetzes im materiellen und<br />

jormellen Sinn (Berlim, 1886); A. Haenel, Studien zum deutschen Staatsrechte, Vol. II:<br />

Gesetz imjormellen und materiellen Sinne (Leipzig, 1888); Duguit, op. cit., c R. Carré de<br />

Malberg, La Loi: Expression de la volonté gén"érale (Paris, 1931).<br />

Em relação a isso, também tem grande importância uma série de casos do direito<br />

constitucional americano, dos quais citaremos apenas ·dois.<br />

Provavelmente, a sentença mais conhecida é a do juiz Mathew, no processo Hurtado<br />

versus Estado da Califórnia, 110 U.S., página 535: "Nem todo ato em forma de legislação<br />

é lei. A lei é algo mais que o mero exercício da vontade como um ato de poder. Não<br />

deve ser uma norma especial para uma pessoa específica ou um caso específico, mas, na<br />

linguagem de Mr. Webster e de acordo com sua conhecida definição, 'a lei geral: uma lei<br />

que ouve, antes de condenar, que procede de acordo com a investigação e que pronuncia<br />

sua sentença somente depois do julgamento', de forma 'que cada cidadão tenha garantidas<br />

sua vida, liberdade, propriedade e imunidade sob a proteção das leis gerais que governam<br />

a sociedade', e desse modo definindo como contrários ao due process oj law a supressão<br />

dos direitos e funções civis de um indivíduo, os decretos punitivos, os atos de confisco,<br />

os que tendem a alterar julgamentos, os que diretamente transferem a propriedade<br />

de um indivíduo para outro, as decisões e decretos do Legislativo e outras semelhantes<br />

atribuições especiais, parciais e arbitrárias de poder, sob a forma de legislação. O poder<br />

arbitrário que faz cumprir à força seus editos em detrimento das pessoas e propriedades<br />

dos súditos não é uma lei, mesmo que esteja sob a forma de decreto de determinado monarca<br />

ou de uma multidão anônima. As limitações impostas por nossa lei constitucional à<br />

ação dos governos, tanto estaduais quanto federal, são essenciais para a preservação dos<br />

direitos públicos e privados, apesar do caráter representativo de nossas instituições políti-

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