OS FUNDAMENTOS DA LIBERDADE
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CAPÍTULO IV<br />
Liberdade, Razão e Tradição<br />
"Nada é mais fértil em prodígios do que a arte de ser livre· mas não há nada<br />
mais árduo do que o aprendizado da liberdade. ( ... ) A liberdade: geralmente, é implantada<br />
com dificuldade, em meio a tormentas; é aperfeiçoada por meio de dissensões;<br />
e seus benefícios só podem ser conhecidos com o passar do tempo."(*)<br />
1. As Duas Tradições de Liberdade<br />
A. DE TOCQUEVILLE<br />
Embora a liberdade não seja um estado natural, mas produto da<br />
civilização, ela não resultou de nenhum projeto. As instituições da liberdade,<br />
assim como tudo que dela se originou, não se estabeleceram<br />
porque fosse possível prever os benefícios que trariam. Mas, uma vez<br />
reconhecidas suas vantagens, os homens começaram a aperfeiçoar e a<br />
ampliar o reino da liberdade e, com esse objetivo, a investigar o funcionamento<br />
de uma sociedade livre. O aperfeiçoamento da teoria da liberdade<br />
deu-se principalmente no século XVIII e iniciou-se em dois países,<br />
Inglaterra e França. O primeiro conhecia a liberdade; o segundo, não.<br />
Por essa razão, temos até hoje duas tradições diferentes da teoria<br />
da liberdade: Ol uma, empírica e assistemática; outra, especulativa era-<br />
(*)A epígrafe deste capítulo foi extraída de Democracy, de Tocqueville, Vol. I, Cap.<br />
XIV, páginas 246 e seguintes; ver também Vol. II, Cap. II, página 96: "As vantagens oferecidas<br />
pela liberdade só aparecem com o passar do tempo, e é sempre fácil confundir a<br />
causa que as origina". Urna versão anterior e ligeiramente mais longa deste capítulo aparece<br />
em Ethics, Vol. LXVIII (1958).<br />
1 Tocqueville observa em urna de suas obras: "Du dix-huitierne siecle et de la révolution,<br />
étaient sortis deux fleuves: !e prernier conduisant les hornrnes aux institutions libres<br />
tandis que le second les rnenant au pouvoir absolu". Cf. a observação de Sir Thomas E:<br />
May, em Democracy in Europe (Londres, 1877), II, 334: "Nos tempos modernos, a históna<br />
daquele país [a França] é a história da democracia, não da liberdade; a história deste<br />
J<br />
J<br />
Liberdade, Razão e Tradição<br />
cionalista. < 2 l A primeira, baseada numa interpretação das tradições e<br />
instituições que surgiram de modo espontâneo e foram compreendidas<br />
imperfeitamente; a segunda, visando à edificação de uma utopia que se<br />
tentou pôr em prática em numerosas ocasiões, sem jamais se conseguir<br />
êxito. No entanto, é a tese racionalista da tradição francesa, plausível e<br />
aparentemente lógica, com suas exaltadas idéias sobre os poderes ilimitados<br />
da razão humana, que progressivamente vem ganhando influência,<br />
enquanto a tradição inglesa de liberdade, menos articulada e menos<br />
explícita, tem perdido terreno.<br />
Essa distinção não é tão clara, porque a chamada ''tradição francesa"<br />
de liberdade surgiu, fundamentalmente, da tentativa de interpretar<br />
as instituições britânicas, e as concepções que outros países formaram<br />
a respeito destas instituições baseavam-se principalmente em obras<br />
de autores franceses.<br />
Ambas as tradições foram definitivamente confundidas quando se<br />
integraram ao movimento liberal do século XIX, período em que até<br />
eminentes liberais ingleses se respaldaram tanto na tradição francesa<br />
como na inglesa. < 3 l No fim, a vitória dos filósofos radicais "benthamistas"<br />
sobre os Whigs (*), na Inglaterra, contribuiu para ocultar a discrepância<br />
básica, que recentemente reapareceu no conflito entre a democracia<br />
liberal e a democracia "social" ou totalitária. < 4 l<br />
Há cem anos, esta diferença era mais compreendida do que nos<br />
dias de hoje. Na época das revoluções européias, em que as duas tradições<br />
se fundiram, a distinção entre liberdade "anglicana" e liberdade<br />
"galicana" ainda foi clarÇtmente definida por um eminente filósofo político<br />
germano-americano. "A liberdade galicana", escrevia Francis<br />
Lieber em 1848, "é buscada no Estado, o que, de acordo com o ponto<br />
[a Inglaterra] é a história da liberdade, e não da democracia". Ver também G. de Ruggiero,<br />
The History of European Liberalism, tradução de R. G. Collingwood (Oxford: Ox·<br />
ford University Press, 1927), especialmente as páginas 12, 71 e 81. Sobre a ausência de<br />
urna verdadeira tradição liberal na França, ver E. Faguet, Le Libéralisme (Paris, 1902),<br />
especialmente a página 307.<br />
2 As palavras "racionalismo" e "raciona:Jista" serão usadas sempre no sentido definido<br />
por B. Groethuysen, em "Rationalisrn", E. S. S., XIII, 113, corno urna tendência "a<br />
dirigir a vida individual e social segundo princípios da razão e eliminar, se possível, ourelegar<br />
a segundo plano, tudo o que for irracional". Ver também M. Oakeshott, "Rationalisrn<br />
in Politics", Cambridge Journal, Vol. I (1947).<br />
3 Ver E. Halévy, The Growth of Philosophic Radicalism (Londres, 1928), página 17.<br />
(*) N. T. - Whig, partido político surgido na Inglaterra no século XVII, durante a<br />
grande controvérsia relativa às prerrogativas reais e aos direitos do povo, que mais tarde<br />
se tornaria o Partido Liberal (não o atual).<br />
4 Cf. J .LTalrnon, The Origins ojTotalitarian Democracy (Londres, 1952). Embora<br />
Talrnon não identifique a democracia "social" com a "totalitária", só posso concordar<br />
com H. Kelsen ("The Foundations of Dernocracy", Ethics, LXVI, Parte 2 [1955], Nota<br />
95), quando este afirma que "o antagonismo que Talrnon descreve corno tensão entre a<br />
democracia liberal e a totalitária é na realidade um antagonismo entre o liberalismo e o<br />
socialismo, e não entre dois tipos de democracia".<br />
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