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tese - vanda do vale arantes - ufmg - Biblioteca Digital de Teses e ...

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O tema volta<strong>do</strong> para a <strong>de</strong>sgraça que se abateu sobre Fortaleza, cuja região fora assolada<br />

pela seca e epi<strong>de</strong>mias <strong>de</strong> varíola, atingin<strong>do</strong> também a família <strong>de</strong> Nava – sua tia Marout foi<br />

acometida pela <strong>do</strong>ença – está inseri<strong>do</strong> no seguinte parágrafo:<br />

Depois a tremenda <strong>de</strong>sgraça que se abateu sobre a província com a seca <strong>de</strong> 77 e<br />

o seu cortejo <strong>de</strong> horrores. A <strong>de</strong>sorganização coletiva acarretada pelas migrações<br />

<strong>do</strong>s retirantes, a <strong>de</strong>sgraça <strong>de</strong> cada um encaran<strong>do</strong> a fome e as fúnebres<br />

companheiras <strong>do</strong> flagelo: epi<strong>de</strong>mias <strong>de</strong> cólera e <strong>de</strong> bexigas. Segun<strong>do</strong> Pedro<br />

Sampaio, a varíola tinha entra<strong>do</strong> no Ceará com o tráfico africano e <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1804<br />

começam as notícias <strong>de</strong> suas <strong>de</strong>vastações. Mas nunca ela se abateu em parte<br />

alguma <strong>do</strong> Brasil com a violência com que pesou sobre as populações – agora<br />

<strong>de</strong>bilitadas pelas caminhadas, ressecadas pela se<strong>de</strong> e exauridas pela fome. Nos<br />

anos terríveis <strong>de</strong> 77 e 78, levan<strong>do</strong> em conta a população <strong>de</strong> Fortaleza, o<br />

morticínio acarreta<strong>do</strong> pela pustulenta foi muito maior que o <strong>de</strong> calamida<strong>de</strong>s<br />

clássicas como a peste <strong>de</strong> Atenas e a peste-negra da Ida<strong>de</strong> Média. Basta dizer<br />

que, em <strong>do</strong>is meses, a capital cearense viu morrerem 27.378 vítimas da <strong>do</strong>ença e<br />

o Barão <strong>de</strong> Studart conta que houve um dia em que foram dar ao Cemitério <strong>de</strong><br />

Lagoa Funda 1.008 cadáveres. O esfalfamento <strong>do</strong>s coveiros <strong>de</strong>ixava-os por<br />

enterrar. Num enxame <strong>de</strong> moscas e num voejar <strong>de</strong> urubus, eles cresciam <strong>do</strong>s<br />

caixões, das re<strong>de</strong>s e <strong>do</strong>s sudários-roxos, da “hemorrágica”; esfola<strong>do</strong>s, da<br />

“confluente”; <strong>do</strong>ura<strong>do</strong>s da crosta simples – as barrigas imensas papocan<strong>do</strong> ao sol<br />

incorruptível. Além <strong>de</strong> testemunharem essas cenas incomportáveis <strong>de</strong> passarem<br />

o dia, à porta, socorren<strong>do</strong> famintos, <strong>de</strong> verem nas ruas da cida<strong>de</strong> a dança<br />

macabra <strong>do</strong>s esqueletos ainda vivos <strong>de</strong> uma população em agonia – meus avós<br />

tiveram o toque da <strong>do</strong>ença em pessoa muito cara. Minha tia Marout foi atingida<br />

e, ao levantar-se, era um espectro <strong>do</strong> que tinha si<strong>do</strong>. Seus imensos olhos escuros<br />

reduziram-se, apertaram-se e ficaram piscos <strong>de</strong> receberem a luminosida<strong>de</strong> que os<br />

cílios perdi<strong>do</strong>s não amorteciam; suas tranças, grossas como cordas e escuras<br />

como a noite, grisalharam e ficaram ralas; sua pele mais lisa que a <strong>do</strong>s jambos<br />

ficou toda áspera e lembran<strong>do</strong> casca <strong>de</strong> goiaba branca. Cuspiu, um por um, trinta<br />

e <strong>do</strong>is <strong>de</strong>ntes perfeitos que foram substituí<strong>do</strong>s pela fosforecente <strong>de</strong>ntadura dupla<br />

que, anos <strong>de</strong>pois, eu a via lavar e escovar, toma<strong>do</strong>, ao mesmo tempo, <strong>de</strong><br />

sentimento <strong>de</strong> pejo e <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ias mágicas e ancestrais 143 .<br />

O quadro ocorri<strong>do</strong> no Ceará foi comum em diversas cida<strong>de</strong>s brasileiras. Após mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong><br />

século XIX, encontramos sinais <strong>de</strong> atenção <strong>do</strong> Governo Imperial à questão, germens da<br />

centralização administrativa. Estabeleceu-se a Junta Central <strong>de</strong> Higiene Pública (1850), que<br />

passou a coor<strong>de</strong>nar as ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> polícia sanitária, vacina antivariólica e fiscalização <strong>do</strong><br />

143 NAVA, Pedro. Baú <strong>de</strong> ossos: memórias. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Sabiá. p. 62-63.<br />

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