You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
STORYTELLER<br />
Marisa Privitera Murdoch/iStock<br />
A<strong>de</strong>us, sogrinha!<br />
Até um ano atrás, mantinha um atelier<br />
on<strong>de</strong> não faltava um forno para fundir<br />
metais e maquinária pesada<br />
LuLa Vieira<br />
Minha sogra morreu aos 104 anos. Artista<br />
plástica (são <strong>de</strong>la as esculturas do Memorial<br />
dos Imortais na Aca<strong>de</strong>mia Brasileira<br />
<strong>de</strong> Letras e no Cemitério São João Batista),<br />
tenista, discípula <strong>de</strong> Guignard, professora,<br />
chefe <strong>de</strong> voluntárias <strong>de</strong> um hospital, lí<strong>de</strong>r<br />
<strong>de</strong> família imensa que se <strong>de</strong>sdobra em diversas<br />
ramificações. Tia <strong>de</strong> Ziraldo, sua casa<br />
em Lagoa Santa vivia cheia <strong>de</strong> artistas<br />
para ouvi-la. Até um ano atrás, mantinha<br />
um atelier on<strong>de</strong> não faltava um forno para<br />
fundir metais e maquinária pesada, que<br />
ela operava sem ajuda. Sua entrevista com<br />
o Jô Soares é uma <strong>de</strong>lícia, on<strong>de</strong> os dois se<br />
paqueram, até ela exigir que o caso que ele<br />
insinua estar interessado seja avalizado por<br />
documentação legal. Evi<strong>de</strong>ntemente, tudo<br />
na mais absoluta brinca<strong>de</strong>ira, até porque,<br />
aos cem anos, ela consi<strong>de</strong>rava o Jô um garoto.<br />
Sobre ela, Mauro Ventura escreveu uma<br />
crônica que faço a mais absoluta questão <strong>de</strong><br />
roubar, até porque realmente não me sinto<br />
muito inspirado. Abro as necessárias aspas<br />
e transcrevo o texto <strong>de</strong>ste amigo, que soube<br />
enten<strong>de</strong>r como ninguém a alma <strong>de</strong>sta mulher<br />
que, tendo mais <strong>de</strong> cem anos, surpreen<strong>de</strong>u<br />
a todos com sua morte. Leiam:<br />
“Meu filho olhou <strong>de</strong>ntro do cinzeiro e me<br />
perguntou: – Pai, o que é isso? Ele tinha três<br />
anos e nunca havia visto uma guimba <strong>de</strong><br />
cigarro na vida. Estávamos em bom número<br />
naquele almoço na casa <strong>de</strong> Silvana Gontijo<br />
e Lula Vieira. Expliquei para Eric o que<br />
era e apontei para a única fumante daquela<br />
tar<strong>de</strong>: Lêda Gontijo, então com 101 anos.<br />
Mais cedo, Lêda havia beliscado torresmo e<br />
pão <strong>de</strong> queijo com linguiça, encarado tutu e<br />
costeleta <strong>de</strong> porco e bebido vinho. Era mesmo<br />
um fenômeno da natureza, com uma<br />
genética privilegiada. –“Eu como <strong>de</strong> tudo,<br />
mas com parcimônia” – ela me contou numa<br />
entrevista para a coluna Dois Cafés e a<br />
Conta, no Globo, em 2015. –“Uma vez, numa<br />
palestra sobre qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida e alimentação<br />
na velhice, me chamaram como<br />
exemplo. Eu ouvia os especialistas falando<br />
sobre comida orgânica e sem gordura, alertando<br />
“não po<strong>de</strong> isso”, “não po<strong>de</strong> aquilo”,<br />
até que me perguntaram: “Dona Lêda, po<strong>de</strong><br />
nos dizer o que faz para ter essa saú<strong>de</strong>?”<br />
Respondi: “Fumo, bebo e jogo. E só não faço<br />
sexo porque não tenho parceiro”.<br />
Cuidava da casa, do jardim e dos bichos,<br />
foi campeã <strong>de</strong> tênis pelo Minas Tênis Clube,<br />
andava <strong>de</strong> moto, fundou as Voluntárias<br />
da Santa Casa <strong>de</strong> Lagoa Santa, on<strong>de</strong> morava,<br />
evitou a <strong>de</strong>rrubada da Igreja do Rosário<br />
da cida<strong>de</strong>. Esculpia, dava aulas, fazia<br />
exposições. Da ma<strong>de</strong>ira à fibra <strong>de</strong> vidro,<br />
passando pela pedra, explorou os mais diferentes<br />
materiais numa carreira que ia da<br />
pintura à escultura, do <strong>de</strong>sign à cerâmica.<br />
Era consi<strong>de</strong>rada por Ziraldo uma das gran<strong>de</strong>s<br />
artistas mineiras do século 20. Já com<br />
100 anos, recebeu um convite <strong>de</strong> amigos<br />
para visitá-los na Bolívia. – “Fiquei doida<br />
para ir e aceitei. Meus filhos foram contra,<br />
então fui sem autorização <strong>de</strong>les”. Quando<br />
a filha Silvana ligou perguntando on<strong>de</strong> ela<br />
estava, ouviu: – “Na Bolívia”. – Mas a gente<br />
combinou <strong>de</strong> passar o Dia das Mães juntas!<br />
Era tar<strong>de</strong>. Lêda adorou a viagem, tanto que<br />
passou uma semana. “Levada”, “arteira”<br />
e “moleca”, como se auto<strong>de</strong>finia, ela lamentava<br />
ter tido <strong>de</strong> parar <strong>de</strong> dirigir – teve<br />
a carteira apreendida por excesso <strong>de</strong> velocida<strong>de</strong>.<br />
Escon<strong>de</strong>u dos netos, porque vivia<br />
alertando que não se po<strong>de</strong> correr. – “Mas<br />
eles <strong>de</strong>scobriram e caíram na minha pele”.<br />
Ainda conseguiu dirigir por mais três anos,<br />
fugindo dos guardas. Até que foi parada e<br />
pediram a carteira.<br />
– Respondi: “Vocês tomaram. Vocês não<br />
guardam, não?” Devem ter achado que eu<br />
estava esclerosada e me liberaram. Nos<br />
momentos difíceis mantinha a irreverência.<br />
Em 2004, teve um tumor no intestino e<br />
veio ao Rio fazer uma colonoscopia (endoscopia<br />
do cólon e do reto). À noite, na casa<br />
<strong>de</strong> Silvana, botou o DVD com o exame em<br />
cima da mesa, e Lula, curioso, perguntou:<br />
- Que DVD é esse? Ela respon<strong>de</strong>u: – “Meu filho,<br />
hoje fiz meu primeiro filme pornô!” Em<br />
Belo Horizonte, <strong>de</strong>safiava a moral da época.<br />
– “Conheci meu marido Paulo em 1935.<br />
Imagine o espanto <strong>de</strong> meus futuros sogros<br />
com uma moça que já naquela ocasião usava<br />
calça comprida, dirigia, fumava e falava<br />
alto?” Mesmo assim enfrentou outros preconceitos:<br />
na época, mulher casada botava<br />
o umbigo no fogão e cuidava do marido e<br />
dos filhos. “Uma mulher da socieda<strong>de</strong> ser<br />
artista era quase como ser prostituta. Por<br />
vergonha, eu escondia muitas obras, quando<br />
era uma nu<strong>de</strong>z ou trabalho mais livre”.<br />
Mas nunca se <strong>de</strong>ixou atingir e se tornou<br />
uma artista plástica reconhecida. Essa mulher<br />
admirável, que acaba <strong>de</strong> nos <strong>de</strong>ixar,<br />
aos 104 anos, vivia espalhando alegria,<br />
bom humor e vitalida<strong>de</strong>, e merecia o apelido<br />
que a neta Flô lhe <strong>de</strong>u: “Vovó radical”.<br />
Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa<br />
e da Approach Comunicação, radialista, escritor,<br />
editor e professor<br />
lulavieira.luvi@gmail.com<br />
58 <strong>24</strong> <strong>de</strong> <strong>junho</strong> <strong>de</strong> <strong>2019</strong> - jornal propmark