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edição de 24 de junho de 2019

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STORYTELLER<br />

Marisa Privitera Murdoch/iStock<br />

A<strong>de</strong>us, sogrinha!<br />

Até um ano atrás, mantinha um atelier<br />

on<strong>de</strong> não faltava um forno para fundir<br />

metais e maquinária pesada<br />

LuLa Vieira<br />

Minha sogra morreu aos 104 anos. Artista<br />

plástica (são <strong>de</strong>la as esculturas do Memorial<br />

dos Imortais na Aca<strong>de</strong>mia Brasileira<br />

<strong>de</strong> Letras e no Cemitério São João Batista),<br />

tenista, discípula <strong>de</strong> Guignard, professora,<br />

chefe <strong>de</strong> voluntárias <strong>de</strong> um hospital, lí<strong>de</strong>r<br />

<strong>de</strong> família imensa que se <strong>de</strong>sdobra em diversas<br />

ramificações. Tia <strong>de</strong> Ziraldo, sua casa<br />

em Lagoa Santa vivia cheia <strong>de</strong> artistas<br />

para ouvi-la. Até um ano atrás, mantinha<br />

um atelier on<strong>de</strong> não faltava um forno para<br />

fundir metais e maquinária pesada, que<br />

ela operava sem ajuda. Sua entrevista com<br />

o Jô Soares é uma <strong>de</strong>lícia, on<strong>de</strong> os dois se<br />

paqueram, até ela exigir que o caso que ele<br />

insinua estar interessado seja avalizado por<br />

documentação legal. Evi<strong>de</strong>ntemente, tudo<br />

na mais absoluta brinca<strong>de</strong>ira, até porque,<br />

aos cem anos, ela consi<strong>de</strong>rava o Jô um garoto.<br />

Sobre ela, Mauro Ventura escreveu uma<br />

crônica que faço a mais absoluta questão <strong>de</strong><br />

roubar, até porque realmente não me sinto<br />

muito inspirado. Abro as necessárias aspas<br />

e transcrevo o texto <strong>de</strong>ste amigo, que soube<br />

enten<strong>de</strong>r como ninguém a alma <strong>de</strong>sta mulher<br />

que, tendo mais <strong>de</strong> cem anos, surpreen<strong>de</strong>u<br />

a todos com sua morte. Leiam:<br />

“Meu filho olhou <strong>de</strong>ntro do cinzeiro e me<br />

perguntou: – Pai, o que é isso? Ele tinha três<br />

anos e nunca havia visto uma guimba <strong>de</strong><br />

cigarro na vida. Estávamos em bom número<br />

naquele almoço na casa <strong>de</strong> Silvana Gontijo<br />

e Lula Vieira. Expliquei para Eric o que<br />

era e apontei para a única fumante daquela<br />

tar<strong>de</strong>: Lêda Gontijo, então com 101 anos.<br />

Mais cedo, Lêda havia beliscado torresmo e<br />

pão <strong>de</strong> queijo com linguiça, encarado tutu e<br />

costeleta <strong>de</strong> porco e bebido vinho. Era mesmo<br />

um fenômeno da natureza, com uma<br />

genética privilegiada. –“Eu como <strong>de</strong> tudo,<br />

mas com parcimônia” – ela me contou numa<br />

entrevista para a coluna Dois Cafés e a<br />

Conta, no Globo, em 2015. –“Uma vez, numa<br />

palestra sobre qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida e alimentação<br />

na velhice, me chamaram como<br />

exemplo. Eu ouvia os especialistas falando<br />

sobre comida orgânica e sem gordura, alertando<br />

“não po<strong>de</strong> isso”, “não po<strong>de</strong> aquilo”,<br />

até que me perguntaram: “Dona Lêda, po<strong>de</strong><br />

nos dizer o que faz para ter essa saú<strong>de</strong>?”<br />

Respondi: “Fumo, bebo e jogo. E só não faço<br />

sexo porque não tenho parceiro”.<br />

Cuidava da casa, do jardim e dos bichos,<br />

foi campeã <strong>de</strong> tênis pelo Minas Tênis Clube,<br />

andava <strong>de</strong> moto, fundou as Voluntárias<br />

da Santa Casa <strong>de</strong> Lagoa Santa, on<strong>de</strong> morava,<br />

evitou a <strong>de</strong>rrubada da Igreja do Rosário<br />

da cida<strong>de</strong>. Esculpia, dava aulas, fazia<br />

exposições. Da ma<strong>de</strong>ira à fibra <strong>de</strong> vidro,<br />

passando pela pedra, explorou os mais diferentes<br />

materiais numa carreira que ia da<br />

pintura à escultura, do <strong>de</strong>sign à cerâmica.<br />

Era consi<strong>de</strong>rada por Ziraldo uma das gran<strong>de</strong>s<br />

artistas mineiras do século 20. Já com<br />

100 anos, recebeu um convite <strong>de</strong> amigos<br />

para visitá-los na Bolívia. – “Fiquei doida<br />

para ir e aceitei. Meus filhos foram contra,<br />

então fui sem autorização <strong>de</strong>les”. Quando<br />

a filha Silvana ligou perguntando on<strong>de</strong> ela<br />

estava, ouviu: – “Na Bolívia”. – Mas a gente<br />

combinou <strong>de</strong> passar o Dia das Mães juntas!<br />

Era tar<strong>de</strong>. Lêda adorou a viagem, tanto que<br />

passou uma semana. “Levada”, “arteira”<br />

e “moleca”, como se auto<strong>de</strong>finia, ela lamentava<br />

ter tido <strong>de</strong> parar <strong>de</strong> dirigir – teve<br />

a carteira apreendida por excesso <strong>de</strong> velocida<strong>de</strong>.<br />

Escon<strong>de</strong>u dos netos, porque vivia<br />

alertando que não se po<strong>de</strong> correr. – “Mas<br />

eles <strong>de</strong>scobriram e caíram na minha pele”.<br />

Ainda conseguiu dirigir por mais três anos,<br />

fugindo dos guardas. Até que foi parada e<br />

pediram a carteira.<br />

– Respondi: “Vocês tomaram. Vocês não<br />

guardam, não?” Devem ter achado que eu<br />

estava esclerosada e me liberaram. Nos<br />

momentos difíceis mantinha a irreverência.<br />

Em 2004, teve um tumor no intestino e<br />

veio ao Rio fazer uma colonoscopia (endoscopia<br />

do cólon e do reto). À noite, na casa<br />

<strong>de</strong> Silvana, botou o DVD com o exame em<br />

cima da mesa, e Lula, curioso, perguntou:<br />

- Que DVD é esse? Ela respon<strong>de</strong>u: – “Meu filho,<br />

hoje fiz meu primeiro filme pornô!” Em<br />

Belo Horizonte, <strong>de</strong>safiava a moral da época.<br />

– “Conheci meu marido Paulo em 1935.<br />

Imagine o espanto <strong>de</strong> meus futuros sogros<br />

com uma moça que já naquela ocasião usava<br />

calça comprida, dirigia, fumava e falava<br />

alto?” Mesmo assim enfrentou outros preconceitos:<br />

na época, mulher casada botava<br />

o umbigo no fogão e cuidava do marido e<br />

dos filhos. “Uma mulher da socieda<strong>de</strong> ser<br />

artista era quase como ser prostituta. Por<br />

vergonha, eu escondia muitas obras, quando<br />

era uma nu<strong>de</strong>z ou trabalho mais livre”.<br />

Mas nunca se <strong>de</strong>ixou atingir e se tornou<br />

uma artista plástica reconhecida. Essa mulher<br />

admirável, que acaba <strong>de</strong> nos <strong>de</strong>ixar,<br />

aos 104 anos, vivia espalhando alegria,<br />

bom humor e vitalida<strong>de</strong>, e merecia o apelido<br />

que a neta Flô lhe <strong>de</strong>u: “Vovó radical”.<br />

Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa<br />

e da Approach Comunicação, radialista, escritor,<br />

editor e professor<br />

lulavieira.luvi@gmail.com<br />

58 <strong>24</strong> <strong>de</strong> <strong>junho</strong> <strong>de</strong> <strong>2019</strong> - jornal propmark

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