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A Mulher que Escreveu Bíblia Moacyr Scliar Em ... - Sua Alteza o Gato

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Apontou para mim:<br />

- Tu. Tu vais julgá-lo.<br />

Eu? Eu, julgar o pastorzinho? Eu, a feia, a esposa rejeitada? Eu? Não.<br />

Eu não poderia fazer aquilo. Era uma honra, e todos me olhavam com<br />

admiração e inveja - mas não, <strong>que</strong>m era eu para julgar, Domine, non sum<br />

digna. Ele, porém, insistiu, e desta vez era uma ordem:<br />

- Tu, sim. Vem, toma o meu lugar.<br />

Desceu, veio até onde eu estava, indicou-me a escada: - Anda. Sobe.<br />

Não havia outro jeito. Lentamente, comecei a subir os degraus, olhando<br />

os leões. Apesar da aparência feroz, da dentuça arreganhada, estavam<br />

imóveis. Eu temia não apenas <strong>que</strong> sacudissem a cabeça desaprovadoramente<br />

- essa não, uma mulher indo em direção ao trono, uma feia, ainda por<br />

cima - mas <strong>que</strong>, pior, saltassem de seus pedestais e se colocassem em meu<br />

caminho, no pasarás, no pasarás. Mas não, as feras continuavam imóveis.<br />

E estavam imóveis por<strong>que</strong> alguém - não o rei; o operador das engrenagens<br />

- mantinha-os imóveis. Teria ele ouvido a ordem de Salomão? Ou tomara a<br />

decisão baseado em seu próprio julgamento? Segundo a lenda, a sabedoria<br />

do monarca resultava de certos livros colocados sob seu trono; era como<br />

se tal sabedoria, emanada dos pergaminhos, penetrasse, como um eflúvio,<br />

no cérebro do soberano. Mas não seria ela transmitida - uma espécie de<br />

mecanismo telepático - pelo operador dos leões ao monarca? Será <strong>que</strong> não<br />

passava Salomão de uma espécie de preposto de um humilde operário <strong>que</strong><br />

jamais via a luz do dia? Uma pergunta para a qual eu não obteria<br />

resposta. Não na<strong>que</strong>le momento. Chegava ao trono. Depois de uma pe<strong>que</strong>na<br />

hesitação, sentei-me. Estava frio, o assento, hostilmente frio. E era<br />

alto o trono, muito mais alto do <strong>que</strong> eu tinha imaginado. Lá em cima eu<br />

me sentia isolada. Não era o mesmo isolamento <strong>que</strong> experimentava ao galgar<br />

a montanha e ao contemplar, lá de cima, o deserto; não, era do<br />

isolamento do poder <strong>que</strong> se tratava ali. Um isolamento, um poder, para o<br />

qual eu não estava preparada. Toda a<strong>que</strong>la gente, centenas de pessoas,<br />

mirando-me, esperando por minhas palavras, aquilo verdadeiramente me<br />

aterrorizava. Mas eu não podia entrar em pânico, não na<strong>que</strong>le momento. De<br />

modo <strong>que</strong> respirei fundo e preparei-me para julgar. Vamos lá, gente, onde<br />

é <strong>que</strong> está a criança para ser cortada em duas, vamos lá.<br />

- Aproxima-te - disse ao pastorzinho. Ele se aproximou do trono.<br />

Olhava-me com tal assombro, com tal temor, <strong>que</strong> me deu uma vontade imensa<br />

de rir: qual é a tua, cara, toca fogo nos manuscritos depois fica aí te<br />

cagando de medo, qual é a tua.<br />

- É verdade - perguntei - <strong>que</strong> <strong>que</strong>imaste o manuscrito mencionado por nosso<br />

rei, por Salomão?<br />

(Pergunta desnecessária, mas outra não me ocorria. Servia ao menos para<br />

ganhar tempo. )<br />

- É - balbuciou. - É verdade. Queimei mesmo. Queimei o tal do manuscrito.<br />

- Hum. Queimaste o manuscrito... Certo, <strong>que</strong>imaste o manuscrito.<br />

Como o rei - mas tinha aprendido muito bem a minha lição, eu -, fiz uma

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